Congregação Judaica Shaarei Shalom – שערי שלום

Tempo de leitura: 19 Minutos

 (Parte 1)

 

CENTRO DE ESTUDOS E PESQUISAS

(OBS: As informações apresentadas neste trabalho, são de várias fontes e não representam o ponto de vista da Congregação Judaíca Shaarei Shalom e nem sempre o ponto de vista judaíco.  Os objetivos primarios de nosso Centro de Estudos e Pequisas é para estimular interesse e debate entre os participantes e motivar pessoas para investigar e estudar as materias e para iluminar e elevar as proprias mentes e almas.)

Ivdu et Adonai b’simchá” (“Sirvamos a Deus com alegria”)

OS SEFARDITAS

 (Parte 1, 5772)

  1. Historía em breve – Os Sefarditas (em hebraico םידרפס, sefardi; no plural, sefardim) é o termo usado para referir aos descendentes de Judeus originários de Portugal, Espanha, etc. A palavra tem origem na denominação hebraica para designar a Península Ibérica (Sefarad דרפס ).

Os sefarditas fugiram das perseguições que lhes foram movidas na Península Ibérica na inquisição espanhola (1478 -1834), onde eram perseguidos pela Igreja Católica, dirigindo-se a vários outros territórios. Uma grande parte fugiu para o norte de África, onde viveram durante séculos. Milhares se refugiaram no Novo Mundo, principalmente Brasil e México, onde nos dias atuais concentram milhares de descendentes dos fugitivos. Os sefarditas são divididos hoje em Ocidentais e Orientais. Os Ocidentais são os chamados judeus hispano-portugueses, enquanto os orientais são os sefardim que viveram no Império Otomano.

Com o advento do sionismo e particularmente após a crise israeli-árabe de 1967, quando as minorias judaicas nos países árabes foram alvo de ataques, muitos dos judeus vivendo em países árabes foram viver em Israel, onde formam hoje um importante segmento da população, com uma tradição cultural diferente dos outros asquenazi.

Por isso, o termo sefardita é frequentemente usado em Israel hoje para referir os Judeus oriundos do norte de África. Entretanto é um erro referir-se genericamente à todos os judeus norte-africanos e dos países árabes como sefardim. Os judeus mais antigos destes países são chamados Mizrachim (de Mizrach, o Oriente), ou seja, orientais.

Houve importantes comunidades sefarditas nos países árabes, quase sempre conflitivas com as comunidades autóctones, sobretudo no Egito, Tunísia e Síria. São judeus hispânicos que quase sempre se opõem à Qabbala sefardita e mantêm um serviço religioso bem disciplinado e de melodias suaves. O rito ocidental é conhecido como Castelhano-Português.

Os Sefarditas foram responsáveis por boa parte do desenvolvimento da Cabaláh medieval e muitos rabinos sefarditas escreveram importantes tratados judaicos que são usados até hoje em tratados e em estudos importantes. [1]

  1. O Decreto de Alhambra – O Decreto de Alhambra foi um decreto régio promulgado pelos Reis Católicos (Isabel I de Castela e o rei Fernando II de Aragão), ordenando a expulsão ou conversão forçada da população judaica da Espanha, e levando à fuga e dispersão dos sefarditas (judeu espanhóis) pelo Magrebe, Médio Oriente e sudeste da Europa. Foi escrito por Juan de Coloma, o secretário real, e assinado em Alhambra, Granada, a 30 de Março de 1492.

Aceite com resignação por grande parte da comunidade judaica, uma notável excepção foi o rabino D. Isaac Abravanel. Um documento fictício, atribuído a Isaac Abravanel, que seria uma resposta escrita a esse decreto, foi na verdade parte de um romance de David Rafael de 1988. No seguimento do seu falhanço em convencer os reis católicos a cancelar o decreto, teria escrito uma resposta pungente e profética ao decreto, nas vésperas da sua partida. A origem real do documento encontra-se numa obra de ficção publicada em 1988, intitulada Alhambra Decree do autor David Raphael. [2]

  1. ROMANCES E CANÇÕES SEFARDITAS DOS SÉCULOS XV A XX TRADUZIDOS DO JUDEU-ESPANHOL

Por Márcio Schiefler-Fontes, Universidade Federal de Santa Catarina

Resumo

Ao traduzir romances e canções sefarditas para o português num exuberante contexto de

pesquisa literária, Leonor Scliar-Cabral promove uma notável abertura para o passado

brasileiro. Sefarad é o nome da Península Ibérica em hebraico, enquanto sefardim ou

sefardita são variantes de adjetivo pátrio relativas aos judeus provenientes da Espanha, que

emigraram em virtude da expulsão determinada pelos reis católicos em 1492, falando o

ladino ou judeu-espanhol, dotados de rica cultura e trágica história. Tais romances e

canções foram traduzidos de textos cantados por Esther Lamandier, à luz da seguinte

distinção: os primeiros obedecem a métrica e temática mais rígidas, ao passo que as

canções tradicionais apresentam métrica mais variada. Pelo fato de os sefarditas também

haverem migrado para o Brasil, há um pedaço da história brasileira irremediavelmente

vinculada à saga sefardita, razão pela qual é lícito afirmar haver aqui sensível significado

histórico, a par de seu evidente conteúdo literário. Em tal contexto, encontram-se dois

aspectos preponderantes: o eminentemente literário, marcado pela riqueza da tradição

secular que lhe caracteriza, e o sentimental, à medida que a nostalgia que cerca a alma

portuguesa – como indiretamente faz com a alma brasileira – é incrivelmente espelhável na trágica trajetória sefardita.

 

SUMÁRIO: 1. RAÍZES DO BRASIL; 2. PARA ENTENDER OS SEFARDITAS;

  1. EXPULSOS DA IBÉRIA, RUMO AO BRASIL; 4. UMA OPORTUNIDADE, UM PROJETO: A OBRA; 5. ANTOLOGIA, CÂNONE, MERCADO; 6. OS ROMANCES E AS CANÇÕES; 7. BALANÇO FINAL; 8. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.

Arrancai-vos os panos verdes, vesti-vos mais que carvão

que vos mataram vosso filho – vosso filho – Absalão.

Aqui sentai-vos ao meu lado, que para vós é o meu pranto.

Vinde aqui, vós, ó minha nora, mulher fostes de Absalão.

Vinde aqui, vós, ó meus netinhos, órfãos recentes que são,

aqui sentai-vos ao meu lado e rezareis de coração.

  1. Raízes do Brasil

No verbete “estudos da tradução” da enciclopédia por si editada, lembra Mona

Baker que o interesse em tradução é praticamente tão antigo quanto a civilização humana1.

Quando Leonor Scliar-Cabral, em Romances e canções sefarditas2, traduziu-os do judeu3

espanhol – ou ladino – para o português num exuberante contexto de pesquisa literária,

Leonor Scliar-Cabral fatalmente promoveu a abertura de uma janela na parede que

invariavelmente nos separa de nosso passado, por mais improvável que a densidade natural dessa barreira possa fazê-lo parecer. Na verdade, o objeto das traduções é bem definido, porque resgata tais romances e canções de uma faixa preestabelecida de tempo (séculos XV a XX), cujas origens, porém, remontam às mais priscas eras, quando a própria civilização pós-classicista ainda tomava corpo (fim do primeiro milênio cristão).

Segundo o novo dicionário de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, diz-se sefardita ou sefardim “de, ou judeu descendente dos primeiros israelitas de Portugal ou da

Espanha, expulsos, respectivamente, em 1496 e 1492”3. Mais especificamente, ilustra o

verbete o fato de provir “sefardita ou sefardim” do vocábulo “‘Sepharad’, provável região

da Ásia Menor (atual Turquia) que posteriormente os emigrantes asiáticos identificaram

com a Península Ibérica”. Diferenciam-se dos asquenazes, “judeus da Europa Central e

Oriental” – como resumidamente os apresenta Antônio Houaiss4.

O vínculo dessas pessoas com o Brasil é fato, história comprovada, daí o vulto

que adquire pesquisa desse naipe, que num certo sentido perpassa célere seus limites

literários para deitar-se na História. As raízes do Brasil aqui se encontram, portanto, num capítulo da comovente e impressionante história dos judeus ibéricos. Torná-la conhecida é, pois, eixo primário de todo o empreendimento literário aqui examinado.

É impossível, nesse contexto, deixar de olhar a instigante pesquisa e as saborosas traduções de Leonor Scliar-Cabral à luz das origens, dos caminhos e das encruzilhadas dos sefarditas. Tanto é assim que o rico posfácio com que a tradutora fecha seu trabalho é nada menos que corolário de apreciável pesquisa nesse sentido, pedra de toque que vai pôr em destaque a ausência de notas de rodapé explicativas, no querer sensibilizar a percepção do leitor antes de satisfazer por completo sua curiosidade.

  1. Para entender os sefarditas – Sefarad é o nome da Península Ibérica em hebraico e se origina de uma passagem do profeta Abdias. Sefardim ou sefardita são variantes de adjetivo pátrio relativas aos judeus provenientes da Espanha que emigraram, após o decreto de expulsão pelos reis4 católicos em 1492, para Portugal, Países Baixos, Inglaterra, norte da África, Império Otomano, Itália e sul da França, falando o ladino ou judeu-espanhol.

A grafia da palavra – “sefardim” procede do plural hebraico, que ao ser lexicografado no português passou a adaptar-se a nossa morfologia, enquadrando-se nos vocábulos oxítonos terminados em “m”, plural “ns”. O vocábulo congênere “tefilin” (filactérios) não sofreu tal incorporação, com a conservação da grafia em caracteres latinos correspondentes ao mencionado plural hebraico5.

Como também adiantado anteriormente, esses adjetivos pátrios contrastam-se a

ashkenazitas ou ashkenázis ou ainda ao lexicografado asquenazes, procedentes todos da

área Ashkenaz, “nome que aparece pela primeira vez na Bíblia como designação de um

filho de Gomner e neto de Jafet (Gen. 10:3)”6. Ao contrário dos sefarditas, os asquenazes

são judeus que trilharam um caminho histórico e geográfico diverso, fixando-se no noroeste

e centro da Europa. São essencialmente descendentes dos judeus rhenisch (alemães) e

falavam a língua iídiche ou judeu-alemão, em contraposição ao ladino ou judeu-espanhol.

No limiar do século XV, começaram a ver-se obrigados a emigrar para o leste europeu

(Polônia, Rússia e Lituânia, cujo território na época ocupava grande porção da região). Na

Rússia, o período czarista, que já conhecia perseguições sazonalmente mais gravosas ao

judeus, deu largada a outra imigração, primeiro para a Europa Ocidental, daí para as

Américas, e por fim para Israel – chamada pelos judeus de “Eretz Israel”7.

Informa Leonor Scliar-Cabral que no séc. XI os sefarditas constituíam 96% do

mundo judeu. Em 1650, ainda constituíam 60% de uma população estimada em 1.750.000

judeus, mas a melhora das condições de vida do norte da Europa resultou numa explosão

populacional dos asquenazes, cujo número na década de 1930 alcançava 91,8% dos 16

milhões de judeus então existentes, situação alterada dramaticamente com o holocausto8.

A primeira leva de judeus a aportar na Península Ibérica o fez ainda sob o domínio romano da Terra Santa.

O número de emigrados aumentou consideravelmente após a destruição do Templo de Jerusalém no ano 70 da nossa Era, determinada por Tito, imperador romano. Trata-se da contextura histórica conhecida como “diásporas”, cujas implicações sobre o Mediterrâneo e a Europa ainda estão por ser descobertas. No século IV, já se encontra preocupação no relacionamento entre cristãos e judeus, o que denota a existência de um número razoável destes. A subseqüente invasão dos visigodos aliviou a 5 discriminação, ao menos até a conversão do líder visigodo Ricaredo ao catolicismo no ano 5869. No período seguinte as perseguições aumentariam10. Essas perseguições alimentaram polêmicas, entre elas a erigida pelo defensor

dos judeus, Santo Isidoro. A invasão muçulmana encontrou, nesse pesado ambiente, certa

acolhida entre os judeus11.

Quando já assegurada grande parte da Península Ibérica aos árabes, seu império fragmentou-se. Os omíadas, expulsos da Mesopotâmia, reergueram seu poder e influência a partir de Córdoba. Numa nova estratificação governamental, com necessidade de burocratas, os judeus encontraram boa acolhida mesmo nas esferas políticas. O grande desenvolvimento do califado de Córdoba, propiciado pelo intercâmbio com o norte da África, com o Egito e com o Oriente, não por acaso coincide com o período áureo dos judeus-espanhóis, que se refletiu nas artes e na literatura12.

O apogeu inicia-se “durante o reinado de Abderraman III (912-971), quando se destaca o primeiro magnata judeu-espanhol, Hasday ibn Saprut, médico, farmacêutico e diplomata, que curou o rei de Leão, Sancho, o Crasso, de obesidade. Desenvolve-se em Córdoba, cognominada ‘casa das ciências’ (dar al-culum), um mecenato graças ao qual sobressaem as figuras de Menachen ben Saruc e Dunas ben Labrat, grandes gramáticos, lexicógrafos e poetas. Traduz-se pela primeira vez, do grego para o latim (pelo monge Nicolás) e depois para o árabe, o De materia medica de Dioscórides que havia sido dado como presente junto com as histórias de Orósio a Abderraman III por Constantino VII, imperador de Bizâncio, no dia 9 de setembro de 949 (Valle Rodriguez, 1981:61). Ao lado das pesquisas lingüísticas e poéticas, desenvolvem-se também os estudos rabínicos, e com a vinda do gaon Mosé ben Hanoc, da Babilônia, com a posterior transferência, para Córdoba e Lucena, das Academias de Sura, Pumbedita e Nehardea. Toda esta eclosão intelectual prossegue até o século XII, sendo conhecido este período como a Idade de Ouro”13. É aí que os judeus-espanhóis conhecem o estabelecimento natural de sua cultura e o limite máximo de sua influência. Às portas da implosão do califado de Córdoba, ensejado por violentas disputas políticas, destaca-se a figura de Semuel ibn Nagrella, ou Semuel há-Naguid, insigne poeta e erudito em estudos rabínicos, “que chegou à condição de vizir”14.

Nesse período áureo brilharam poetas e filósofos, entre estes uma das maiores figuras do judaísmo: o codificador, filósofo e médico Rabi Moshé ben Maimón, conhecido6 como Maimônides, cujo escrito O Guia dos Perdidos é “provavelmente a obra filosófica mais importante escrita por um judeu”15. Scliar-Cabral esclarece: “Os debates em torno da obra de Maimônides vão dividir os judeus de Sefarad em dois grupos irreconciliáveis: os ortodoxos, que a acusam de heresia, e os intelectuais com formação mais científica.

Ocorre também uma divisão no plano sócio-econômico e ético: de um lado, um grupo de cortesãos, com ambições de poder, riquezas e glória, de outro, os pequenos artesãos, os religiosos, cujo ideal era devolver a comunidade ao ‘seio do Talmud’ (Lacave, op. cit.: 17). Foi feroz a luta que se desenvolveu entre os judeus ortodoxos e a heresia caraita (adesão estrita ao

texto bíblico).”16

Houve igualmente contribuição significativa de sábios judeus à astronomia, à matemática e “aos princípios sintetizadores do pensamento da época”17.  Interessante notar que ao próprio estudo da tradução ofereceram os sefarditas valiosa contribuição: “O Colégio de Tradutores de Toledo, fundado pelo arcebispo Don Raimundo de Toledo já era famoso no começo do século XII, com traduções do árabe e do hebraico e transformou-se, assim, no berço da língua espanhola escrita, sendo pioneiro no uso do romance, inclusive da Bíblia em castelhano: ‘O procedimento era o seguinte: um judeu, falante do castelhano e especialista em árabe, traduzia de viva voz o texto original ao romance: em seguida, um clérigo passava esse texto para o latim culto’ (Lacave, op. cit.: 20)”18. E não só aí: o astrolábio foi introduzido na Europa por um judeu converso, considerado patriarca dos autores de novelas curtas e difusor do apólogo hindu, persa e árabe pela primeira vez no ocidente cristão19.

Essa manifestação cultural intensa dos séculos XI e XII “‘coincide com o prodigioso desenvolvimento de sua poesia lírica religiosa, superior em elevação ideal a de todos os povos da Idade Média, inclusive Provença. Esta poesia é fruto próprio e espontâneo da sinagoga; mas por algo e talvez por muito, nela entraram conceitos de ordem filosófica e cosmológica, derivados das escolas profanas e estranhos, sob todos os aspectos, à tradição talmúdica. Ocorre, assim, serem estes poetas ao mesmo tempo os maiores líricos e os mais profundos e célebres pensadores de sua raça, excetuando-se somente Maimônides, em quem a qualidade de poeta não aparece’ (Menendez Pelayo, op. cit.: 204, trad. da autora)”20. Muito embora nesse período estivessem os judeus em situação não tão trágica como alhures, a alternância entre épocas de perseguição e tolerância prosseguiu21.

7

Nesses anos, alguns estilos literários já haviam circulado, além das novelas

curtas: as macamas, “pequenos contos ou novelas satíricos, como as 50 Saracosties de

Aben el Asterconi”22.

Tem início a partir daí estudos cabalísticos, com continuação da perseguição até a expulsão em 1492. Em 1232 estabeleceu-se na Espanha o tribunal do Santo Ofício, sob orientação de frades dominicanos, cujo funcionamento ensejou emprego de calúnias e acusações, como assassinato ritual, blasfêmias contra Jesus e ridicularização do crucifixo. O ponto alto se dava na Sexta-Feira Santa, aproveitada para instigar o populacho a apedrejar as comunidades judias; os judeus eram queimados vivos ou submetidos a torturas como a da roda23. O contínuo cerceamento dos direitos dos judeus na Espanha oportuniza um quadro de situações familiares dramáticas, o qual aparece em certa medida, como se verá, nas traduções de Leonor Scliar-Cabral.

  1. Expulsos da Ibéria, rumo ao Brasil – Dotados assim de rica cultura e complexa história, os judeus ibéricos viram-se forçados a emigrar. Fizeram-no para diversos lugares: Salônica, na Macedônia; Larissa, na Tessália; Sófia, na Bulgária; Bucareste, na então Valáquia; Saraievo, na Bósnia; Belgrado, na Sérvia; Constantinopla, na Trácia; Brusa e Esmirna, na Anatólia; Jerusalém, na Palestina; Damasco e Alepo, na Síria; Tânger, no Marrocos24.

Acabaram grupos de sefarditas no Brasil de duas formas. Uma delas é a destacada por Leonor Scliar-Cabral, chegando em Recife no bojo da disputa travada entre Portugal e Holanda pelo domínio do Brasil. A maior parte desse grupo, aliás, terminaria emigrando para Nova Iorque, então Nova Amsterdã (1655) e dominada pela Holanda, depois da vitória portuguesa25. Uma outra vertente, não mencionada, foi inicialmente trazida de regiões marroquinas então dominadas por Portugal ao Brasil, originariamente por decisão da monarquia portuguesa, ansiosa por ocupar o vazio demográfico da Amazônia. Estabeleceu-se ali o que os sefarditas passaram a denominar “Eretz Amazônia”. Um pouco mais tarde, outros judeus sefarditas de localidades diversas se dirigiram à Amazônia para tentar fazer fortuna com a extração de borracha das seringueiras. Tais fatos foram objeto de recente documentário exibido pela TV Cultura de São Paulo26.

8 Nessa ordem de atos, há um pedaço da história brasileira irremediavelmente vinculada à saga sefardita, daí o motivo pelo qual é lícito afirmar que a obra empreendida por Leonor Scliar-Cabral, muito embora ostente conteúdo literário evidente, possui também sensível significado histórico, cuja relevância caracteriza como grande perda de oportunidade o ler as traduções sem ter em mente tal constatação.

  1. Uma oportunidade, um projeto: a obra – Aspecto interessante do trabalho de Leonor Scliar-Cabral, que contém – como visto anteriormente – as valiosas traduções dos romances e canções sefarditas dos séculos XV a XX, é a divisão apresentada pela autora. …

Calhou ao gênio criativo da autora o projeto entabulado pelo Instituto de Cultura Judaica Marc Chagall (Porto Alegre) para resgatar o cancioneiro sefardita no Brasil, consoante se proclama na orelha do livro, editado em 1990. Interessante notar que o alcance do conjunto desde logo foi percebido: “Depois de entregar as traduções a Massao Ohno, alertou-me o editor sobre a necessidade de um posfácio, pois o tema dos sefarditas é pouco conhecido no Brasil.

Embrenhei-me na pesquisa e fui redescobrindo um pedaço de mim que é um pedaço de nós todos: o legado desta história que não pode ser esquecida. Os incêndios em Sevilha, em Toledo e da monumental biblioteca de Córdoba não puderam apagar de todo o que ficou na memória dos sobreviventes, ainda hoje resguardado na voz dos rapsodos sefarditas que procuro levantar no Brasil, sob os auspícios do Instituto Cultural Marc Chagall, objeto de próxima divulgação”28. Não se tem notícia da continuação do projeto do Instituto Cultural Judaico Marc Chagall, nem sequer da existência de atividades nos dias de hoje. Graficamente, sobretudo, a obra de Leonor Scliar-Cabral é sedutora…

A par disso, também merecem destaque as ilustrações postas ao olhar do leitor, capa em primeiro lugar. Por ser talvez o espaço visualmente mais privilegiado do livro, porquanto necessariamente é o primeiro contacto do leitor com a publicação, a capa adquire

uma atenção editorial singular. Da forma como se apresenta, a capa compõe, neste caso,

verdadeira soleira dos textos, porque faz o leitor se deparar com arco do bairro judeu na

calle del Angel em Toledo, o que transmite admiravelmente a sombria atmosfera medieval

que assalta a mente de quantos se põem a devassar as vis perseguições sofridas pelos judeus

ibéricos. Acompanha o estilo as ilustrações do corpo do livro: representação de escultura

romântica David de la Puerta de las Platerías de Santiago de Compostela; interior de um

10 mikvá (banho litúrgico) recentemente descoberto em Besalú (Girona); e mulheres sefarditas

em barco na Turquia – o que torna simples correr de olhos agradável ao público29…

  1. Antologia, cânone, mercado – Em Romances e canções sefarditas (Séc. XV ao XX) encontram-se bem definidos diversos elementos. O gênero poesia, a época exposta logo na fachada (segunda metade do segundo milênio cristão), a vertente histórica e cultural que marcha ombro a ombro com o valor literário dos textos.

Além disso, o conjunto é proveniente de uma só língua de partida (judeu-espanhol ou ladino) e de uma só língua de chegada (português), assim como a tradução é realizada monocraticamente, por uma só tradutora – aliás integrante de um restrito grupo do campo lingüístico-universitário brasileiro – em todo o espectro. Todavia, tal conjunto – como já versado acima – ultrapassa a mera ponte entre línguas para conectar culturas, no caso as culturas lusófona e sefardita…

…Paralelamente, nossa riquíssima tradição cultural nesta seara, do cancioneiro nordestino e de seus congêneres através do País, concomitantemente a inúmeras outras manifestações culturais do jaez, decerto não se mostra carente, muito em razão da contribuição de culturas como a sefardita. A própria receptividade de trabalho dessa natureza é presumivelmente limitadíssima, pois sequer nas academias alguns meandros históricos e literários são conhecidos. Haveria outro meandro indevassável como esse? O interesse de uma empresa com tais características, portanto, jamais haveria de ser econômico. Interesse cultural, e talvez religioso, são os únicos aptos a justificá-la.12

  1. Os romances e as canções – Em suma, o objeto deste estudo são romances e canções traduzidos por Leonor Scliar-Cabral desde textos cantados por Esther Lamandier, Romances I e II, prefaciados por Daniele Becker34. O termo “romance” encerra no contexto presente um sentido específico. Quanto ao estilo, esclarece a tradutora: “Para manter os padrões rítmicos e a rima assonântica, esbarrei com as diferenças morfo-sintáticas entre o judeu-espanhol e a língua portuguesa: onde no judeu-espanhol temos duas sílabas (por exemplo, ‘en los’), no português temos uma (‘nos’); onde no português são possível assimilações, quando o vocábulo termina em vogal e o constituinte seguinte começa pelo artigo definido feminino (‘a’ e seu plural), no judeu-espanhol temos o definido iniciando por consoante (‘la’).

…Outro detalhe cujo valor pode passar despercebido é a procedência dos textos.

Enquanto a data não pode ser recuperada com precisão absoluta, muitas vezes a origem da

canção ou do romance sobrevive pela linhagem dos portadores da tradição oral. Constitui

isso informação cara ao estudioso, uma vez que a dispersão dos sefarditas pelo mundo

mediterrâneo e além os fez criar laços com culturas diversas, cada porção incorporando as

particularidades respectivas. Em verdade, poucos textos aparecem desprovidos de

procedência geográfica. É detalhe que não passa ao largo da atenção da tradutora,

assinalado que 15 provêm de regiões que formaram o extinto Império Otomano e 4

do Marrocos38.

14 Por fim, frisem-se os temas apresentados, como amor, bodas, morte, sono infantil.

É sintomático que sejam todos temas privados, particulares. Não surpreende que

ausentes sejam temas públicos como guerras, à exceção da religião, é claro. Num universo

em que preponderaram por séculos repressões desumanas, a relação causa e efeito exibe

todo o seu vigor.

  1. Balanço final – Romances e canções sefarditas (Séc. XV ao XX) …O sefardita, na óptica da História, é de uma tristeza contagiante, tristeza causada por longo período de incertezas dolorosas e tragédias anunciadas. John Milton, novamente, é um a reconhecer que a literatura traduzida pode ter um importante papel na construção ou desconstrução de uma idéia de mundo, pois possibilita aos leitores “sensação de familiaridade com coisas estrangeiras”, a resultar numa “crescente sofisticação dos membros da comunidade ‘imaginada’”, “tornando-os participantes de uma comunidade ‘imaginada’ internacional”42. Nesse caminhar de idéias, Leonor Scliar-Cabral ofereceu contribuição digna de nota, não só pelo evidente trabalho exigido, nem mesmo pelo esmero apresentado, mas especialmente por fazer da tradução o que seu escopo lhe imprime…
  1. Referências bibliográficas…

SCLIAR-CABRAL, Leonor. Romances e canções sefarditas (Séc. XV ao XX). Traduzidos do judeu-espanhol por Leonor Scliar-Cabral. São Paulo: Massao Ohno, 1990.

10 Mais especificamente: “Sisebuto, em 613, promulga o édito que obriga os judeus a abraçar o cristianismo ou emigrar, inaugurando uma conduta que, com diferentes requintes de obscurantismo e terror, ressurge aqui e ali, nos diferentes reinos da península, conforme os conflitos políticos, econômicos e sociais não resolvidos necessitassem de um bode expiatório conveniente, até a expulsão definitiva, em 1492. Alguns cânones do Concílio IV de Toledo (633) detalham as medidas, como o afastamento dos filhos de judeus da fé mosaica e a

conversão de toda a população judaica espanhola ao cristianismo. Desenha-se, assim, um procedimento que ocorrerá doravante, diante das perseguições: emigração (no episódio acima mencionado, para o norte da África), conversão total (cristãos novos), conversão, mantendo a fé mosaica às escondidas (marranos (termo considerado ofensivo) ou anusium…

11 “A invasão muçulmana em 711, liderada por Muza ben Nossair (muçulmano) e por Tarik, reconhecido como judeu da tribo de Simeão, encontrou aliados fiéis nos judeus, como, por exemplo, um dos chefes da batalha de Guadualete, Kaula al-Yahudi, quando a monarquia visigótica foi derrotada”… 21 “Não se pense, porém, que este período áureo tenha sido isento de perseguições aos judeus espanhóis: em 1013, ocorre uma matança de judeus em Córdoba, em decorrência da intromissão nas lutas internas no califato; por ocasião da morte de Sancho III, o Maior (1035), se dá um assalto e matança no bairro judeu (juderia) de Castrojeriz e em 1066 e 1070, matança de judeus no reino de Granada, apesar de conselhos do17 Papa Alexandre II; em 1109, há matanças generalizadas nas juderias castelhanas, por ocasião da morte de Afonso VI que havia outorgado a Carta inter Christianos et Judaeos, regulando-lhes o convívio; em 1180, matança dos judeus em Toledo e, finalmente, em 1196, o incêndio da juderia de Leão, por ordem de Alfonso VIII de Castela e Pedro II de Aragão. Nos pequenos estados cristãos e onde foi se dando a reconquista, particularmente na Catalunha (incorporada à Septimania), os judeus passaram a gozar de privilégios que contrastavam com a situação em outros países europeus: é importante assinalar que os judeus eram considerados propriedade da realeza, o que implicava sua proteção, através dos ‘privilégios dos judeus’ e foros especiais, entre os quais uma multa superior, em caso de assassinato, às pagas pela morte de um camponês” …

26 Documentário ERETZ AMAZÔNIA. Disponível em: <www.israel3.com/article194.html>. Acesso em: 8 nov. 2004. Curiosidade: “Em Manaus, o documentário mostra um fato curioso: um rabino que virou santo popular católico.

A história é do rabino Emannuel Muuyal, que por volta de 1900 deixou a Palestina para iniciar uma campanha de arrecadação de dinheiro para a escola de rabinos que ele mantinha na Terra Santa. Muuyal foi ao Marrocos e soube que muita gente tinha vindo para a Amazônia fazer fortuna com a extração da borracha das seringueiras. O rabino, então, viaja ao Brasil e se estabelece em Manaus. Em 1908, Muuyal morre, vítima de uma doença tropical. O corpo dele foi enterrado num cemitério no centro de Manaus porque não havia um cemitério judaico na capital do Amazonas. Não demorou muito, começaram a surgir placas de agradecimento de graças alcançadas. Nos anos 40, a comunidade judaica fez um muro em torno no túmulo do rabino para separá-lo do cemitério cristão. O muro acabou virando um espaço a mais para as placas e bilhetes de agradecimentos de milagres. Por volta de 1978, um ministro do governo israelense de Menahem Beguin, sobrinho de Muuyal, enviou uma carta solicitando o translado dos restos mortais do rabino para Israel. A própria comunidade judaica se opôs e até hoje o túmulo do rabino continua em Manaus, cheio de velas e cercado de relatos de milagres tribuídos a ele”. [3]

Fontes:

[1] Wikipedia: http://pt.wikipedia.org/wiki/Sefardita

[2] Wikipedia: http://pt.wikipedia.org/wiki/Decreto_de_Alhambra

[3] Márcio Schiefler-Fontes, Universidade Federal de Santa Catarina: http://www.scientiatraductionis.ufsc.br/sefardita.pdf

Coordenador: Saul S. Gefter –  04 de Tevet de  5772 –  31 de dezembro de 2011

 



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