I. Costumes dos Anussim nas tradições familiares – Do século XVI ao século XVIII, judeus
portugueses foram forçados se converter ao Catolicismo. Eram levados até pias batismais a
força, muitas vezes até mesmo puxados pelas barbas. Esses judeus eram chamados de “cristãos-
novos”. Muitos desses judeus continuaram praticando Judaísmo escondidos, apesar de na rua
parecerem cristãos católicos. Esses, que continuaram mantendo costumes judaicos, receberam o
nome de “marranos” (palavra que significa “porco”). Com o passar do tempo e com a militância
do “Santo Ofício”, mesmo sob ameaças de tortura em porões de Igrejas e até mesmo de morte
na fogueira, eles preservaram suas tradições de uma forma adaptada, mas que ainda assim
servia para identificá-los como judeus.
Em 1500, o Brasil é descoberto e desde a chegada de
Cabral e começam a vir ao Brasil judeus, que logo ja eram milhares, que foram forçados a
conversão no Cristianismo. Um a cada quatro com “nome português”, era judeu. Grande parte
do “povo brasileiro” de hoje descende destes judeus portugueses e é possível encontrar milhares
de descendentes diretos ou indiretos deles. Em 1997, o Professor Eduardo Mayone Dias,
professor emérito da Universidade da Califórnia (UCLA), sugeriu uma lista de perguntas e de
costumes que podem indicar uma possível origem judaica de uma família. A lista obviamente é
incompleta, pois não abrange todos os costumes possíveis.
Na verdade ainda há muito o que se acrescentar, embora boa parte dos principais costumes estejam listados. São apresentadas aqui práticas possivelmente já esquecidas pelas tradições familiares no decorrer dos tempos. Se você
possui um sobrenome ;português; (principalmente dos que constam em nossa lista de Sobrenomes usados por judeus da Inquisição), compare tais práticas com as tradições de sua família, se possível com a ajuda dos familiares mais antigos que possuir (pais, tios, avós, bisavós e outros familiares mais antigos) e verifique sua possível ascendência judaica.
Família – Alguém, pai, avô, ou outro parente, já falou algo sobre a família ser de judeus?
Alguém da família fala/falava alguma língua desconhecida? Parecia com o espanhol? Era
totalmente desconhecida?
Algum parente evita ou evitava igrejas católicas?
As Igrejas, mesmo
católicas, que os familiares frequentavam não tinham imagens?
As Igrejas tinham divisão, com
local para os homens e local para as mulheres ficarem?
Qual a relação dos familiares com a
igreja católica e com os membros do clero? (uma relação de aversão, ironia, chacota, raiva,
desprezo pode indicar origem judaica).
Alguém da família participava de reuniões secretas, ou de encontros onde só homens ou só os pais podiam ir?
Ou de algum grupo de oração secreto?
Os nomes bíblicos são/eram comuns entre os familiares?
Era comum o casamento consangüíneo?
Tataravós, bisavós, avós, pais ou familiares casaram entre primos e/ou tio com
sobrinha.
Ritos de Nascimento e Infância – Colocar a cabeça de um galo em cima da porta do quarto
onde o nascimento iria acontecer. Depois do nascimento, a mãe não deveria descobrir-se ou
mudar de roupas durante 30 ou 40 dias. Ela deveria permanecer em repouso em sua cama, e
afastada do contato com outras pessoas, pois segundo a Lei, a mulher fica impura durante vários
dias após um parto (Levítico 12). Parecida com esta prática é a de afastar-se do contato com o
esposo no período menstrual, em que também é considerada impura (Levítico 15. 19-33).
Ainda durante esses trinta dias, a mulher só comia frango, de manhã, de tarde e de noite. Dava
“sustância”, força para a recuperação.
Lançar uma moeda prateada na primeira água de banho do bebê. Dizer uma oração oito dias depois de nascimento na qual o nome do bebê é citado.
Realizar a circuncisão ou mesmo batizar o menino ao oitavo dia de nascido. Acender alguma
vela ou lamparina no quarto onde o parto ia acontecer, porque o menino não podia ficar no
escuro até ser batizado (ou circuncidado). Logo após o batismo, raspar o óleo da crisma e
colocar sal na boca da criança.
Ritos Matrimoniais – Os noivos e seus padrinhos e madrinhas deveriam jejuar no dia do
casamento. Na cerimônia, as mãos dos noivos eram envoltas por um pano branco, enquanto
fazia-se uma oração. Da cerimônia seguia-se uma refeição leve: vinho, ervas, mel, sal e pão sem
fermento. Noivo e noiva comiam e tomavam do mesmo prato e copo.
Refeições – A prática de jejuns era comum. Era proibido comer carne com sangue.
Às vezes também se retiravam os nervos, com uma faca especial para tal. O sangue caído ao
chão no abate do animal era coberto com terra ou mesmo propositalmente derramado todo ao
chão e depois coberto com terra. A faca usada no abate de animais era testada na unha.
Ovos com mancha de sangue eram jogados fora. Não se comia carne de porco, pois é
considerada impura. Não era permitido cozinhar carne e leite juntos. Ás vezes esperava-se um
tempo entre a ingestão do leite e da carne. Comia-se apenas comida preparada pela mãe ou pela
avó materna. Um menino jejuava durante 24 horas antes de completar 7 anos. Costumava-se
beijar qualquer pedaço de pão que cai no chão. Era proibido comer carne de animal de sangue
quente que não tivesse sido sangrado. Havia certas restrições quanto aos tipos de peixe
comestíveis: os peixes “de couro” (sem escamas) não serviam para consumo, e às vezes só os
peixes do mar podiam ser ingeridos. Moluscos e mariscos também eram proibidos.
Costumes – Acender velas nas sextas-feiras à noite. Celebrar a Páscoa, e jejuar durante a
Semana Santa. As datas da Páscoa Cristã e da Páscoa judaica freqüentemente coincidem.
Limpar a casa nas sextas-feiras durante o dia. Era proibido fazer qualquer coisa na sexta-feira à
noite (até mesmo lavagem de cabelo). Realizar alguma reunião familiar nas sextas-feiras à
noite. Aos sábados, velas eram acesas diante do oratório e deveriam queimar até o fim do dia.
Evitar trabalhar aos sábados. Sábado era o dia do banho bem tomado e de vestir roupas novas.
Dizeres comuns: “O Sábado é o dia da glória”, ou “D-us te crie” (HayimTovim), para quando
alguém espirrava. Comemorações diferentes das católicas, como o “Dia Puro” (YomKippur) ou
algum feriado de Primavera. Era costume de alguns acender no Natal oito velas.
Quando acontecia algo ruim, rasgavam-se as vestes. Um costume ainda muito comum hoje em
dia era varrer o chão longe da porta, ou varrer a casa de fora pra dentro, com a crença de que se
o contrário fosse feito as visitas não voltariam mais. Na verdade esta prática está ligada ao
respeito pela Mezuzah (caixa com texto bíblico), que era pendurada nos portais de entrada, e
passar o lixo por ela seria um sacrilégio. Pedir a benção para os pais na hora da saída e da
chegada em casa. Normalmente ao abençoar um filho, neto ou sobrinho, costumava-se fazer
com a mão sobre a cabeça. Como o dia judaico começa na noite do dia anterior, o início de um
dia era marcado pelo despontar da primeira estrela no céu. Então o sábado começava com o
surgir a primeira estrela no céu na sexta-feira. Se uma pessoa demonstrasse alguma reação
publicamente com relação a tal estrela, ela seria alvo de suspeitas. Um adulto consegue conter-
se, mas uma criança não. Então ensinava-se às crianças a lenda de que apontar estrelas fazia
crescer verrugas nos dedos. Tradição de seguir as fases da lua (Salmo 104.19), correlacionando
com o ciclo agrícola. Deixar restos de grãos nas lavouras para os pobres. Tradição de não jogar
alimentos fora e aproveitar tudo. Prática de usura (empréstimos com juros), tanto em dinheiro
como objetos e coisas. Atração pelo comércio e por pedras preciosas (ex: ouro e prata).
Destaque pelo excesso de trabalho, ganância e inteligência. Mantinham-se unidos e transmitiam
as tradições familiares aos filhos. Os filhos eram educados e recebiam educação religiosa
(costume antigo, com fim de despistar inquisidores). Em geral eram religiosos, com fé, mas sem
santos e imagens. Antes de beber, jogar um pouco de bebida para o santo (tradição com origem
no vinho derramado para Elias no ritual de Pêssach, a Páscoa Judaica). O uso de barba cerrada
sempre foi um costume judaico. Uso de expressões como “Que massada” (uma fortaleza judaica
que foi destruida), ou “pagar a siza” (sizá é imposto em hebraico) ou “fazer mezuras”
(reverência à mezuzah). Ainda expressões como “a carapuça serviu”, que é referência aos
chapéus usados por judeus na Idade Média para diferenciar dos não judeus. Lavar as mãos antes
de refeições, seja por pureza ou higiene. Uso de objetos como Estrela de Davi (estrela de 6
pontas), usada em paredes e em jóias, algumas vezes era vista como amuleto.
Ritos Fúnebres – Cobrir todos os espelhos da casa. Toda a água da casa do defunto era jogada
fora. Cortar as unhas do defunto como também alguns fios de cabelo e envolver tudo em um
pedaço de papel ou pano. Lavar o corpo de um morto. Normalmente com água trazida da fonte
em um recipiente novo, que nunca tenha sido usado, e vestir o corpo em roupas brancas, as
mortalhas. O corpo era velado durante um dia, e então uma procissão levava-o à igreja e de lá
ao cemitério. Jogar um punhado de terra sobre o caixão, quando esse era descido à sepultura. A
casa então era lavada. Durante uma semana manter-se-ia o quarto do finado iluminado. A casa
da família enlutada fechada ao máximo, durante uma semana, com incenso queimando pelos
cômodos. Quase ninguém entrava ou saía durante esse período. Os homens não se barbeavam
durante trinta dias. Manter o lugar do defunto à mesa, encher o prato dele ou dela e dar a
comida a um mendigo. Não comer carne durante uma semana depois de uma morte na família.
Jejuar no terceiro e oitavo dia e uma vez a cada três meses durante um ano.Colocar comida
perto da cama do falecido. Fazer a cama do falecido com linho fresco e queimar uma luz perto
dela durante um ano. As parentes mulheres deveriam cobrir suas cabeças e esconder as faces
com uma manta. Ir para o quarto do defunto por oito dias e dizer:
Que D-us te dê uma boa noite. Você foi uma vez como nós, nós seremos como você. Passar
uma moeda de ouro ou prata em cima da boca do defunto, e então dá-la a um mendigo. Passar
um pedaço de pão em cima dos olhos do defunto e dá-lo a um mendigo. Dar esmolas em toda
esquina antes da procissão funerária chegar ao cemitério. Ter várias luzes iluminando em
véspera de Dia Puro, em memória do defunto. Em algumas cidades havia o chamado abafador”,
que deveria ajudar alguém gravemente doente a ir embora antes que um médico viesse
examiná-lo e descobrisse que o enfermo é judeu. O abafador, a portas fechadas, sufocava o
doente, proferindo calmamente a frase “Vamos, meu filho, Nosso Senhor está esperando!”.
Feito o trabalho, o corpo era recomposto e o abafador saía para dar a notícia aos parentes: “ele
se foi como um passarinho…”. Jurar pelo descanso de um morto querido ou pela alma da mãe
ou do pai. [1]
II. A Influência dos judeus “cristãos-novos” na cultura mineira – por Rita Miranda Soares
O povo brasileiro é fruto e fonte criadora de pluralidade cultural. A presença de outros povos
em território nacional ajudou a moldar algumas de nossas principais características culturais,
desde o desembarque de Cabral na terra que viria a ser o Brasil. Essa diversidade deve ser
reconhecida, respeitada e valorizada. Pois um povo que não conhece suas raízes, é um povo sem
identidade. Pensando nisso, procuramos resgatar nesse estudo a influência da cultura judaica
sefaradim na civilização brasileira, especialmente em Minas Gerais, que é o tema central da
nossa pesquisa. Consideramos importantíssimo marcarmos essa influência e nos lembrarmos da
vertente judaica junto com o índio, junto com o negro, junto com o português, e com vários
outros povos – italianos, sírios e libaneses, poloneses, japoneses, etc. – que aqui vieram
compartilhar conosco da sua cultura. Resgatar esses valores é resgatar a própria cultura mineira,
a qual está intrinsecamente ligada à tradição milenar desse povo. Tradição que se viu
camuflada, esquecida em muitas casas, simplesmente para que as famílias pudessem fugir às
mãos de ferro da Inquisição. Quantos jovens e crianças não tiveram de renegar seu sangue, sua
crença, sua família? Quantos homens e mulheres não se viram obrigados a deixar seus lares,
suas terras e seus parentes, jogados numa aventura de futuro incerto, em frágeis naus, a fim de
virem para uma terra estranha, sem saber o que os aguardava?! A Península Ibérica (Portugal e
Espanha) contribuiu, de maneira avassaladora, durante a Inquisição que durou cerca de três
séculos, se não para o genocídio, pelo menos para o abafamento de boa parte da cultura, religião
e arte de um povo de tão rica formação humanística. A assimilação deles em nossa cultura foi
imposta pela Inquisição, sob pena de expatriação ou morte, deixando muitas características
judaicas no substrato dos brasileiros. O estudo não pretende ser histórico nem profundo, apenas
aborda e defende que muitos costumes, hábitos ou tradições do interior mineiro sofreram
influência marcante dos judeus sefaraditas portugueses que vieram para Minas fugindo da
Inquisição no nordeste brasileiro. Após o batismo forçado pela Inquisição de Portugal, esses
judeus ficaram conhecidos como “cristãos-novos”, para diferenciá-los dos “cristãos-velhos”.
Muitos continuaram a praticar a sua religião secretamente e, por isso, eram constantemente
vigiados e denunciados ao “Santo Ofício” como judaizantes; estes tinham todos os seus bens
confiscados, além de viverem humilhados e confinados naquele país, isso quando não eram
torturados e queimados vivos nas fogueiras. O descobrimento do Brasil em 1500 foi uma porta
que se abriu para esse povo perseguido. Milhares de “cristãos-novos” vieram para o Brasil na
época da colonização já em 1503 (…). Mais tarde, com a atuação do Tribunal do Santo Ofício
na Bahia em 1591/93, e em Pernambuco em 1593/95 e novamente na Bahia em 1618, os judeus
que, a princípio, se encontravam nessas duas capitanias, dispersaram-se por todo o Brasil,
principalmente para o Sul e Sudeste (…). Com a descoberta do ouro nas capitanias de Minas em
fins do século XVII, ocorre um movimento em direção ao território mineiro. Segundo a
historiadora (…), a maioria era formada por cristãos-novos que se estabeleceram na região, em
atividades econômicas e no comércio.
Mas que marcas eles deixaram na formação do povo mineiro? Que costumes, hábitos ou
tradições podemos identificar em Minas como sofrendo influência daqueles judeus cristãos-
novos? Que influência exerceram na formação da nossa identidade? A este grupo étnico que
ajudou a povoar o Brasil nos três primeiros séculos do descobrimento e a seus descendentes que
ora representa o grosso da população brasileira, devemos esta grande similitude com os
sefaradins ibéricos. A alma profundamente quebrantada pela fé em D’us, o espírito pacífico e de
bom humor, um povo amante da paz com uma grande capacidade para viver e sair de situações
difíceis e adversidades seculares – o famoso “jeitinho” brasileiro – , uma tendência universalista
para as coisas filosóficas, as habilidades com o comércio, etc. Em suma, um povo apaixonado e
obstinado, uma raça bonita e sábia, apesar de seus defeitos e mazelas. Analisando estas e outras
características, percebe-se claramente que o povo do interior do estado de Minas Gerais parece
ser o retrato mais fiel dos judeus portugueses do século dezesseis a dezoito que vieram povoar
este país. O temperamento do homem dessas regiões, seu aspecto físico, os costumes em vigor
até bem pouco tempo, herdados dos antepassados povoadores, indicam influência
preponderante desses judeus ibéricos. Também os registros de nomes demonstram uma
concentração de judeus cristãos-novos nessa região do interior mineiro, proporcionalmente
entre as mais densas do mundo. O cancioneiro popular de Minas exprime bem o espírito
mineiro. Aqui as coisas são feitas sem pressa, para durar – o tempo pouco importa. Diz-se que o
mineiro é “fechado” como sua terra. Esse fechamento traduz-se numa sobriedade evidenciada
no seu modo de ser – no comer, no vestir, no falar. O mineiro escuta muito mais do que fala e
não demonstra facilmente seus sentimentos. “Não desperdiça gestos, como não desperdiça
nada”(Alceu Amoroso Lima). Certamente aprendemos com nossos antepassados a não
desperdiçar, pois seus bens tinham sido espoliados pela Inquisição e vieram para o Brasil sem
nada para aqui construírem suas vidas. Daí o conceito de que o mineiro é “pão-duro”, em outras
palavras, “econômico”. O mineiro “calado” aprendeu com seus ancestrais a esconder seus
sentimentos e crenças para não ser vítima dos “deduradores” ou “espiões” da Inquisição.
Tanto é assim, que quando alguém está fazendo perguntas demais, diz-se que ele está inquirindo
muito (inquisição = ato ou efeito de inquirir). E o tradicionalismo mineiro? Quando se fala na
“tradicional família mineira” associa-se logo a ideia a uma atitude ultraconservadora. O sistema
patriarcal mineiro tem suas raízes nos colonizadores cristãos-novos vindos na época da
mineração – aqui chegaram com seus valores tradicionais intactos, plantando-os em Minas. O
mineiro é triste, repete-se constantemente. De uma tristeza guardada, que transparece em sua
arte e só se denuncia sutilmente, em gestos discretos. De onde viria essa tristeza? Talvez da
saudade que se perdeu no tempo. Saudade que os judeus sentiram quando deixaram a terra onde
viveram por tantos séculos – a península ibérica – e emigraram para o Brasil. Também da
tristeza de se saber perseguido e vigiado por onde quer que vá. É em Minas também que se
encontram as primeiras expressões de nacionalidade e de justiça. E de reivindicações pelos
direitos adquiridos, presentes nos motins e revoltas do século XVIII. A circulação do ouro e de
diamantes levava, em seu bojo, a circulação das idéias, suscitando rebeliões que, hoje, são
reconhecidas como sementes de nossa independência nacional e de nosso acesso à
modernidade. A sucessão de rebeliões impressionou o governador, conde de Assumar, que,
queixando-se ao rei pela sublevação de Felipe dos Santos, Vila Rica (1720), afirma: “O espírito
de rebelião é quase uma segunda natureza das gentes de Minas” (…). O que era rebelião para o
reino português, significava justiça para o povo mineiro. Foi a dominação e a insubmissão, a
coragem e o medo, a desconfiança e a luta, a saudade e a esperança, a discrição e o apego à
liberdade, que fizeram um povo mineiro profundamente ligado ao seu berço, à sua gente e à sua
terra. A descoberta do ouro em Minas que, segundo alguns autores se deveu ao cristão-novo
Antônio Rodrigues Arzão, em 1693, acarretou forte movimento migratório, vindo da própria
Colônia ou da Metrópole para o interior. Na primeira metade do século XVIII, segundo Neusa
(…), estima-se que a corrida do ouro levava para as Minas, oito a dez mil pessoas por ano. Em
pouco tempo, a capitania de Minas Gerais tornou-se a mais populosa da Colônia, suplantando a
da Bahia e a do Rio de Janeiro. Vila Rica, uma das primeiras vilas surgidas, foi o centro
comercial da capitania, onde atuaram a maioria dos cristãos-novos processados pela Inquisição
em Minas. No meado do século, uma grande comunidade judaica tentou fundar uma irmandade
clandestina na cidade. O historiador Elias José (…) nos conta com maior clareza este fato e
narra os costumes que ele encontrou ali e em outras regiões próximas: “Em Vila Rica, meados
do século dezoito, havia uma comunidade judaica muito bem disfarçada, que tentou organizar-
se numa falsa irmandade, com o título de “fiéis de Deus”. Como se sabe, assim se intitulavam
os seguidores do profeta Eliseu, que em meio da idolatria de Israel, proclamava sua fidelidade a
Yaveh. Chegaram a ocupar uma casa junto da atual capela do Bom Jesus dos Perdões, então em
construção, e enganaram o bispo de Mariana, que somente depois de muito tempo desconfiou
dessa confraria e resolveu dissolvê-la. Esse e outros fatos, que seria longo enumerar, explicam
os costumes que ainda encontrei em minha infância e mocidade e que perduram no interior de
Minas.[…] Os filhos e netos de judeus, perdida a lembrança religiosa, adotaram a prevenção
contra os do seu sangue e acometiam contra eles com frases que os depreciavam. […] O sujeito
econômico, “unha de fome”, como se dizia, era apelidado de somítico, isto é, semítico. Fazer
sofrer alguém, prejudicar, ofender, etc., era “judiar”… Afirma-se que quando um judeu
disfarçado, ou seja, marrano, estava para morrer, a fim de evitar que novamente ele se revelasse
adepto da lei de Moisés, comprometendo os demais, era logo chamado o “abafador”, isto é, um
sujeito que tinha por missão estrangular habilmente o doente. Isso permaneceu em nossos
costumes com os conhecidos personagens que “ajudavam a morrer”. Quando alguém definhava
em moléstia longa, diziam que “estava tão fraco que nem tinha força para morrer”. Chamando o
abafador, ele afastava do quarto do doente as pessoas da família, encostava a porta e começava
a operação. Punha um crucifixo nas mãos do doente, passava os braços pelas costas e aplicava o
joelho contra o tórax… À medida que ia aumentando a compressão contra o peito do
moribundo, asfixiando-o, em voz alta, para ser ouvido de fora, ia dizendo: – Vamos, meu filho!
Nosso senhor está esperando! Quando o paciente exalava o último suspiro, o abafador
compunha o corpo, chamava as pessoas da família e lhes comunicava que o fulano havia
morrido “como um passarinho”, isto é, suavemente […] Esses homens que “ajudavam a morrer”
ainda existem em distantes povoados de nosso interior. “Lamparina” é um ritual judaico e
persiste no interior do estado. Ainda de uso doméstico, acendia-se a lamparina de azeite no
quarto da parturiente porque a criança, antes de ser batizada ou passar pela circuncisão, não
pode ficar no escuro. […]. Aos sábados, acendia-se diante do oratório uma vela, que deveria
arder até o fim do dia, costume judaico que se cristianizou […]; os sábados eram ainda os dias
de vestir “roupa lavada”. O sinal de hospitalidade mais sensível, revelador de especial atenção
para com um viajante, e a primeira coisa a fazer antes de qualquer alimento, era mandar-lhe ao
aposento uma bacia de água morna para lavar os pés. Recordação milenar dos desertos da Ásia,
transformada em cortesia. Em Minas, em São Paulo e creio que em quase todo o Brasil de
povoamento antigo, ninguém comia carne de animal de sangue quente que não tivesse sido
“sangrado”(ex.: a galinha). Este uso é de uma importância transcendente para o judeu, e como
tal ficou arraigado em seus descendentes como costume irrevogável.[…]. Do mesmo modo,
apesar da riqueza piscosa de nossos rios, ela nunca constituiu base de alimento para nossas
populações, salvo as forçadamente ribeirinhas. Era colossal o consumo de peixe salgado que
vinha para Minas, em lombo de burro, no período colonial, substituído depois pelo bacalhau. É
que os peixes mais abundantes em nossos rios são “peixes de couro”, expressamente proibidos
pelo livro de Levítico”. Com o passar do tempo, passando a febre do Eldorado, os cristãos-
novos se segregaram, por assim dizer, entre as montanhas de Minas, longe dos litorais e portos
marítimos, distantes de outras correntes migratórias, dando ao povo mineiro peculiaridade
étnica e cultural com características bastante definidas. No começo, famílias como os Leões, os
Fortes, os Henriques, os Carneiros, os Campos, etc., chegaram a constituir povoados,
verdadeiros “guetos”, que ainda hoje se reconhecem por não terem capelas em suas ruínas, em
contraste com os fundados por cristãos-velhos, onde a igreja era uma das primeiras edificações
(LEAL, …). Em Paracatú, Serro Frio, Sabará e imediações e em Pitanguí tinham suas maiores
aglomerações. Eram numerosos também nos arraiais que cercam Ouro Preto e Mariana e ao
longo do caminho do Rio Grande e da Bahia. Havia, porém, cristãos-novos espalhados por todo
o território mineiro: nas estradas, nas entradas das vilas e nos caminhos de “ir-e-vir”.
Considerando-se o trabalho desbravador que esses cristãos-novos realizaram e os movimentos
comerciais que inovaram, pode-se dizer que a eles se deve a realização dos primeiros contratos,
a criação dos primeiros empregos, promovendo negócios e instrumentos que revertiam para a
Coroa portuguesa, ficando, porém os lucros e parte da riqueza em mãos dos moradores. A
historiadora Neusa FERNANDES (…) nos relata que a terceira década do século XVIII foi o
período em que a ação inquisitorial tomou maior impulso em Minas. Num espaço de dez anos,
foram presos em Minas cerca de 30 cristãos-novos, todos acusados de judaísmo. Ao ler os
processos analisados pela historiadora em seu livro, percebemos que muitos deles foram criados
na religião católica, até a idade de 11, 12, 13, 19 ou mesmo 20 anos, quando então abraçavam o
judaísmo, persuadidos ou influenciados pela avó, ou pela mãe. Sabemos que no judaísmo é a
mulher quem educa as crianças, cabendo-lhe a tarefa de ensinar-lhes todas as tradições e
costumes. Esse hábito está ainda presente nas famílias mineiras, onde à mulher cabe a tarefa de
educar os filhos, discipliná-los e iniciá-los na religião, ficando o marido apenas com a
incumbência de trabalhar e suprir a casa. Além disso, a “religião de verniz” ou o “ir para a
igreja sem convicção interior”, atribuída pelo clero católico aos brasileiros em geral, é
originária, talvez, do comportamento dos cristãos-novos que, por circunstâncias ou displicência,
ficavam anos embrenhados nas matas, sem comungar e confessar. A posição espiritual do
brasileiro, que se mantém relativamente indiferente nas discussões religiosas, pode ser fruto do
conturbado ambiente sócio-religioso-colonial (…) da época. Os três séculos de perseguição,
movidos pela Inquisição aos cristãos-novos luso-brasileiros levaram o grupo ao inconformismo.
Vivendo numa “marginalidade interior”, “homem dividido” segundo a historiadora Anita
Novinsky, temendo sempre possíveis denúncias, o cristão-novo tornou-se permeável e atraído
para idéias e movimentos de oposição ( Como prova a Inconfidência Mineira). O cristão-novo
se sentia em permanente transgressão. Não era católico nem judeu. Praticava um dualismo
religioso, apresentando-se exteriormente como cristão-novo e praticando os ritos judaicos
dentro de casa ou da prisão, sempre com a preocupação de se ocultar para não despertar
suspeitas nos vizinhos. Essa situação é bem expressa no romance “A saga do marrano” (…): “A
nós foi aplicada e continuam a aplicar a violência. O efeito é trágico: somos católicos na
aparência para sobreviver na carne, e somos judeus por dentro, para sobreviver no espírito” . A
influência mais forte dessa ambiguidade, desse dualismo, talvez esteja no “fechamento dos
mineiros”, no seu jeito calado, na sua resistência em falar das suas crenças mais íntimas.
Guardados nas montanhas de Minas, estão até hoje muitos traços dos cristãos-novos e seus
descendentes, expressos no que se chama hoje de: conservadorismo mineiro, política mineira ao
pé do ouvido, pão-durismo mineiro, humor mineiro, desconfiança mineira, o jeito amaneirador
do povo mineiro, a superação de obstáculos, o apego à justiça, enfim, toda “mineirice” se
identifica muito com os judeus portugueses dos séculos XVI, XVII e XVIII. A seguir,
procuramos listar alguns costumes judaicos incorporados à tradição mineira, a maioria do livro
do LEAL (…) , outros tirados da informação verbal e da tradição oral: • Passar a mão na
cabeça: isto é, relevar, perdoar, acarinhar, ignorar uma falta de alguém. É a bênção judaica. •
Sefardana: Para o historiador Augusto de Lima, a expressão insultuosa de Sefardana é
deturpação intencional dos nomes “Sefarad” [1] e “Sefaradins”. • Jurar pelo eterno descanso de
um morto querido: juro pela alma do meu pai, ou da minha mãe, e assim por diante. É resíduo
de um rito judaico. • D-us te crie: ante o espirro de uma criança. Herança da frase hebraica –
Hayim Tovim. • Amuletos: usado muito no interior, os signos de Salomão ou de David (a
estrela de seis pontas) e até mesmo nas porteiras e muros das casas, embora para o judeu não
seja amuleto, mas seu significado foi deturpado entre os descendentes assimilados.
• Varrer a casa: da porta para dentro das casas, costume arraigado até os dias de hoje.
• Passar mel na boca: quando da circuncisão, o Rabino passa o mel na boca da criança para
evitar o choro. Daí a origem da expressão: “Passar mel na boca de fulano”. • Siza: vem do
hebraico “Sizah”, quando vai pagar o imposto. Pagar a siza. • Massada: palavra muito usada
pelos mineiros para explicar uma tragédia: “foi uma massada”. A fortaleza de Massada, perto
do Mar Morto, foi destruída pelos romanos nos anos 70 d.C., quando pereceram mais de 800
judeus, segundo afirma Flávio Josefo. • Lavar os mortos: largamente usado no interior das
Minas Gerais. Usado ainda, em algumas regiões. Está bem desaparecido. • Para o santo: o
hábito sertanejo de, antes de beber, derramar uma parte do cálice, tem raízes no rito hebraico
milenar de reservar, na festa do pessach (páscoa), copo de vinho para o profeta Elias
(representando o Messias que ainda virá). • Punhado de terra: costume de jogar terra no caixão
quando ele é descido na sepultura. • Mezuras: fazer mezuras, reverências. Talvez venha do
Mezuzah [2]hebraico colocado nas portas, ao qual os judeus antes de entrar fazem uma
reverência. • Carapuça: a expressão “fulano de tal pôs a carapuça”, ou “esta carapuça não serve
para mim”, vem dos tempos da Inquisição, quando o réu era obrigado a colocar uma carapuça
sobre a cabeça, assumindo a culpa.. • Judiar: termo/dito-popular que vem dos tempos da
Inquisição, em que se maltratavam e perseguiam os judeus – significa atormentar e torturar os
judeus. • Mesa de mineiro tem gaveta para esconder a comida quando chega visita: esse
costume, conhecido dos mineiros e relacionado à sovinice, tem outra raiz. É o costume que
tinham os cristãos-novos e que passou aos seus descendentes, de guardar a comida que estavam
comendo quando chegava um visitante – normalmente um cristão-velho. Para isso, as mesas da
copa tinham gavetas. A raiz desse costume é que muitos cristãos-novos, apesar do batismo
forçado, continuavam praticando secretamente a sua religião. E no judaísmo, a comida deve ser
kasher, ou seja, a comida recomendada pela Torah, na qual existem alimentos proibidos aos
judeus – Levíticos 11 – como, por exemplo, a carne de porco, peixe sem escama, etc. Dentro
desse preceito, há receitas tipicamente judaicas. E se um cristão-velho chegasse de repente à
casa e visse essa comida típica, fatalmente o cristão-novo seria reconhecido e denunciado. Por
isso, eles guardavam o que estavam comendo nas gavetas, e ofereciam outra coisa ao visitante,
como o queijo minas, por exemplo. Esta é a raiz desse costume, que muitos mineiros até
brincam a respeito, mas que não está relacionado à sovinice e sim ao medo da delação
(MENDA, …). • Lenda da Verruga: como se sabe, o dia no judaísmo começa na véspera. Então,
o “shabat” – descanso judaico no Sábado, começa na véspera com o nascimento da primeira
estrela. Se um judeu apontasse para o céu quando visse a primeira estrela para anunciar o início
da festa do Shabat, como cristão-novo ele estaria se denunciando. O adulto poderia se controlar,
mas o que se diria para as crianças? “- Não aponta que se nasce verruga”. Era a única maneira
de poder controlá-las, para que a família não fosse descoberta e perseguida pela Inquisição
(MENDA, …). • Ficar a ver navios: era a época de ouro da Península Ibérica. O rei Dom
Manuel precisava dos judeus portugueses, pois eram toda a classe média e toda a mão-de-obra,
além da influência intelectual. Se Portugal os expulsasse logo como fez a Espanha, o país
passaria por uma crise terrível. Então o rei fingiu marcar uma data de expulsão, que era a
Páscoa. No dia marcado, estavam todos os judeus no porto esperando os navios que não vieram.
Todos foram convertidos e batizados à força, em pé. Daí a expressão: “ficaram a ver navios”. O
rei então declarou: não há mais judeus em Portugal, são todos cristãos (cristãos-novos). Era
1492. Durante mais ou menos 30 anos eles continuaram praticando o judaísmo por debaixo do
pano, às escondidas, mas com tolerância portuguesa, até a chegada da Inquisição. Com a
Inquisição, veio a vigilância, a perseguição, a intolerância, e foi aí que muitos vieram para o
Brasil fugindo dela (MENDA, …). Além dos costumes e expressões mencionadas acima, há um
outro aspecto que gostaríamos de mencionar, embora seja tema para outro estudo mais amplo. É
a questão dos sobrenomes. Até a época de Napoleão, o judeu não tinha sobrenome: era “fulano
filho de fulano” – não tinha identidade civil. Com a conversão forçada, eles têm de assumir um
sobrenome e adotam nomes de famílias tradicionais cristãs, ou nome de um local, ou de uma
árvore, ou da sua profissão, ou de um animal, ou de um português ilustre.
Os arquivos da Inquisição da Torre do Tombo, em Lisboa, pesquisados (…), traz os nomes de
25 judaizantes brasileiros processados na Bahia, dos quais citaremos apenas alguns sobrenomes:
Antunes, Costa, Duarte, Gonçalves, Fernandes, Lopes, Mendes, Miranda, Nunes, Rois, Souza,
Teixeira, Ulhoa e outros. Outros sobrenomes de pessoas processadas no Brasil pela Inquisição,
devidamente documentados, são (…): Abreu, Andrade, Barros, Borges, Cardozo, Carvalho,
Coelho, Carneiro, Cunha, Ferreira, Figueira, Gomes, Henriques, Leão, Lemos, Machado,
Miranda, Moura, Nogueira, Oliva, Oliveira, Paes, Pinheiro, Pires, Ramos, Rios, Reis, Serra,
Sylva, Simões, Soares, Tavares, Telles, Valle, Vaz, etc. Acompanhando a história dessas
famílias, nota-se que grande parte delas se dirigia em direção ao Sul, fixando residência nos
estados do Rio de Janeiro e Minas Gerais. Outros subiam em direção ao norte do país,
especialmente Pernambuco e Pará (…). Esses estados também foram muito influenciados por
uma série de costumes judaicos, que não abordaremos nesse estudo. Ressaltamos que não
podemos afirmar que todo brasileiro, cujo sobrenome conste desta lista seja necessariamente
descendente de judeus portugueses. Para saber-se ao certo precisaria de uma pesquisa mais
ampla, estudando a árvore genealógica das famílias, o que pode ser feito com base nos registros
disponíveis nos cartórios. Apesar disso, o que queremos frisar é que há uma grande
concentração desses sobrenomes em Minas (e outros que não citamos por questão de espaço),
mostrando a descendência dos cristãos-novos. A influência histórica judaica-sefardita é
inegável. A história da formação do povo mineiro e do povo brasileiro em geral, estará mutilada
até que se faça um profundo estudo sobre os cristãos-novos e seus descendentes da Península
Ibérica, e da grande influência que exerceram na vida do povo mineiro e brasileiro espalhado
por esse imenso país. Essa história está muito próxima de nossos olhos, de nosso tato, de nossos
costumes, portanto é muito reveladora e com fatos muito evidentes. Basta escrevê-la sem
tendências e nem preconceitos. Orgulhemo-nos, como mineiros, da nossa herança cultural.
Afinal, um povo para crescer, precisa da sua identidade, e para um povo conhecer sua
identidade, precisa conhecer e resgatar suas raízes o mais profundo que puder. [2]
Fontes: [1] https://www.anussim.com.br/marranismo/costumes-dos-anussim-nas-tradicoes-familiares.php
[2] ABRADJIN, 26/07/2012 : http://anussim.org.br/a-influencia-dos-judeus-cristaos-novos-na-cultura-mineira/
Coordenador: Saul Stuart Gefter
A responsabilidade do conteúdo dessa publicação é do seu autor.