- Introdução – Para os ascendentes dos sefardim, judeus da Península Ibérica, 5252 – 1492 E.C… é concebido como o desditoso ano, em que “personae non gratae” (a rainha Isabel de Castela, o rei Fernando de Aragão e o frade dominicano Torquemada) e acontecimentos (Inquisição e expulsão) afligiram os israelitas da região. Muitos foram assassinados e suas propriedades usurpadas mesmo antes de dizerem adeus, outros dissiparam-se da Espanha e se precipitaram mundo afora, rumando para longe da Península Ibérica. A Inquisição, tribunal eclesiástico conhecido como Santo Ofício e que perseguia judeus, muçulmanos e irreligiosos, tornou-se famosa em razão da sangria, queimações em praças públicas e torturas. Sob a égide do 4¢ª Concílio de Latrão, em 1215, esteve em intenso exercício até a primeira metade do século 19, sendo mais inflexível na Espanha e em Portugal.
MAPA: Diáspora dos falantes da hakitía e do ladino
- A língua Ladino – A língua usual dos sefardim que imigraram para a Turquia, Sérvia, Bulgária, Romênia, Grécia, Israel, França e regiões circunvizinhas, foi o ladino; a dos que imigraram para o norte da África, ficou conhecida como hakitía. Apesar de ambas terem a mesma origem − castelhano −, o ladino é basicamente o idioma de Castela do século 15, recheado de palavras turcas, italianas, gregas, francesas, hebraicas, entre outras, mas com a idiossincrasia fonético-fonológica e morfossintática ibérica.
Não muito diferente, a hakitía resulta da soma de três idiomas − 42% de castelhano do século 15, 38% de árabe marroquino e 20% de hebraico litúrgico −, que é igual ao judeu-marroquino.
Hakítico-falantes entendem o que ladino-falantes querem dizer, mas o contrário não é verdadeiro. A hakitía é mais oral que escrita, fala-se com maior freqüência do que se escreve; há irrisórios documentos oficiais e religiosos, contudo o número de missivas familiares é relativamente significativo. Não se chegou a um consenso para definir a grafia da hakitía − em caracteres latinos ou hebraicos. Os hakítico-falantes nunca se importaram em estabelecer um alfabeto para a língua.
- Segregação, Separatismo religioso, Migrações e a expulsão – Os judeus sefardis, séculos atrás, experimentaram uma situação de isolamento absoluto − social, cultural e linguístico −, se comparados com seus patrícios de outras regiões. Criaram, então, formas especiais de falar, seja por particularidades culturais ou por autodefesa, a fim de se comunicarem sem serem compreendidos por não-judeus.
As chamadas línguas judaicas surgiram por pelo menos três razões. 1- Segregação: os judeus não adquiriram as normas dos dialetos não judaicos co-territoriais por causa da exposição limitada à sociedade não judaica. Como resultado, eles podiam não seguir normas não judaicas de padronização. Suas línguas, cortadas das inovações lingüísticas que afetavam os falantes não judeus, se tornavam arcaicas; 2- Separatismo religioso: o judaísmo encorajaria o uso do hebraico e do aramaico e apresentaria relativo fechamento para os termos da língua nativa que denotassem conceitos religiosos não judaicos e línguas litúrgicas não judaicas; 3- Migrações: com a expulsão, aumentou a probabilidade de os judeus ficarem mais largamente expostos a dialetos heterogêneos e a línguas estrangeiras do que a população não judaica relativamente mais sedentária.
Religiosos sefardim passaram para o ladino centenas de páginas que continham preces e escritos judaicos. O primeiro documento impresso apareceu em Constantinopla, no ano de 1510. Já para documentos vazados em hakitía é improvável que haja um lugar e uma data tão precisa, pois essa variante linguística judaico-românica era considerada uma fala de comunicação estritamente oral e popular, sem finalidade religiosa.
- No desfecho da Idade Média – No desfecho da Idade Média (1453), num ambiente permeado pela ideologia religiosa intolerante e por interesses político-econômicos tenebrosos, milhares de judeus − homens, mulheres, crianças e idosos − expulsos da Espanha ficaram órfãos da pátria na qual nasceram e cresceram e que ajudaram a construir e desenvolver. Após a queda do reino de Granada, os reis cristãos puseram fim à existência dos judeus no território ibérico. Acolhidos no Império Otomano pela dinastia dos Banu Marin, esta foi complacente com os judeus a ponto de lhes dar proteção, ainda que em troca do pagamento de impostos.
Outra curiosidade é que os judeus não serviam às armas e gozavam de liberdade intelectual, judicial e religiosa. A maioria dos historiadores israelenses enfatiza que, no Marrocos, os israelitas tinham relativa autonomia. Estabeleceram de forma independente seus próprios conselhos e suas próprias instituições jurídicas, ficando aos cuidados da legislação muçulmana apenas os casos de delitos criminais. Fora isso, os judeus tinham voz e vez.
Por fim, a hakitía acaba de se constituir num veículo lingüístico comum a uma parcela de judeus procedentes da Espanha e de Portugal, os quais foram vítimas do primeiro holocausto do povo israelita. [1]
- Línguas em extinção: O Hakitia em Belém do Pará – Resumo: Esta dissertação tem como objetivo descrever o processo de extinção do hakitia, uma língua românica e judaica, na comunidade sefardita de Belém do Pará, Brasil. A pesquisa visou identificar em que estágio de extinção essa língua se encontra, quais de seus elementos ainda resistem, e assim compreender o que acontece com uma língua minoritária, em fase de restrição de uso frente ao português brasileiro. Faz-se uma contextualização histórica do hakitia, voltando-se a sua origem na Espanha, com a expulsão dos judeus em 1492, e suas várias rotas de exílio, dentre elas, o Marrocos no norte da África, e, a partir daí até a Amazônia. A pesquisa tem como base metodológica pressupostos gerais da sociolinguística laboviana; no que se refere ao contato lingüístico apóia-se em Thomason & Kaufman (1991). Os dados trabalhados são fornecidos por um corpus constituído para esta pesquisa, que compreende a transcrição de sete entrevistas com informantes de três faixas etárias de ambos os gêneros, da cidade de Belém. O trabalho mostra que o que ainda resiste do hakitia em Belém do Pará insere-se na estruturação das sentenças portuguesas. Foram classificados elementos linguísticos, dentro do sistema verbal e nominal e também extra-linguísticos, como o uso do hakitia como fator de identidade e língua de ocultação, dentre outros. As frases comuns e os provérbios são também registrados, mas relativamente poucos se comparados aos arrolados na literatura. [2]
III: Á questão de a hakitía ser para os judeus do Marrocos – um marcador de identidade e singularidade frente à população arabófono tanto judaica quanto muçulmana. … A trajetória histórica dessa língua pode ser dividida em dois grandes períodos que assim está organizada, segundo Sephiha (1980: 47): 1. De 1492 até 1860: este período se caracteriza por certa continuidade com relação ao espanhol medieval; caja (caixa) e casa (lar) se pronunciavam como [‘kaja] e [‘kaza], por exemplo. 2. De 1860 até a redução dos falantes da hakitía: este período foi marcado pela ocupação espanhola de Tetuan em 1860.
Os hakítico-falantes e especificamente a classe economicamente dominante tentaram imitar os hábitos lingüísticos e a pronúncia espanhola do século XIX. Este período é onde a Espanha tem interesse de “intervir” no Marrocos mediante empresas econômicas e colonizadoras.
Contudo, todos estes esforços tiveram apenas um pequeno êxito lingüístico, e sua influência se reduz a modestas mudanças fonético-lexicais da hakitía….
- Onde e quem fala a hakitía? Comparado ao que foi, os falantes da hakitía são poucos nos dias atuais e os proficientes moram no Marrocos, Israel, EUA, Canadá, Argentina, Venezuela, Espanha, França e Brasil. Os centros mais desenvolvidos que se dedicam ao estudo da hakitía são Nova York, Israel, Turquia, França, Bélgica e Espanha. É difícil estimar o número de hakítico-falantes espalhados nos três continentes. Os jovens consideram antiquado falar a língua em público, já os idosos a têm como patrimônio ontológico israelita. A hakitía é historicamente oral, portanto, está sujeita às intempéries diatópicas, diastráticas e diafásicas da sociolingüística, ou seja, a hakitía que se fala na Amazônia é ligeiramente diferente, em alguns aspectos, da falada em Israel, por exemplo.
Sempre posta em segundo plano frente ao ladino, esse goza de maior prestígio por, no mínimo, dois fatores: 1. Os falantes do ladino imigraram para importantes centros da Europa e ampliaram os horizontes semânticos do idioma com empréstimos de mais de duas línguas de famílias diferentes; já os hakítico-falantes ficaram basicamente domiciliados ao norte da África. Os ladino-falantes, pela própria disposição geográfica em que se encontravam, administraram com mais sucesso seus negócios do que seus compatriotas; afinal, uma língua social, político e economicamente forte possui maior prestígio do que outra cujos falantes mal têm acesso à educação. Veja, por exemplo, o caso do inglês, alemão, francês, italiano e espanhol; e 2. O ladino sempre foi escrito; língua em que se vazavam os textos religiosos do judaísmo. Línguas escritas têm história, estão registradas; a hakitía não saiu da adolescência lingüística; transmitida de geração em geração, não existe pesquisas em educação, cultura, linguagem e arte…quase nada grafado e o que está escrito, ora é no alfabeto latino ora no alfabeto hebraico. Além do que o que se pode ler, no máximo, são cartas e alguns minguados documentos.
- Alguns adágios em hakitía
- Ai que bien melda tu sharut. Como é bom quando teu filho ora.
- Saquenme desta guachlás que no me aguento mas. Tirem-me esta carga inoportuna que não agüento mais.
- Dio te lo bendiga! Que D’us te abençoe! 4. Ferazmal! Afasta-te do mal!
- El sachen se quedô con la chala de açafran. O homem fica com o rosto pálido.
- Mechorado 120 anios y huenos y que yo pueda mirar quando lo completes con refuá shelemá.
Que eu chegue aos 120 anos com felicidade, saúde e paz.
- Non me vai a caparito. Não faça coisa errada que te traga dano.
- Onde pongas la mano haies provecho. Onde puseres as mãos, tenhas sucesso.
- Por maót hasta el perro baila. Por dinheiro até o cachorro dança.
- Quien cambia de lugar, cambia de mazál! Quem muda de lugar, muda de sorte!
- Se nos olviden las guezerot nunca mas. Que o mal nos esqueça e as desgraças nunca mais.
- Trecha de tu madre te cambiô la vida. A surra de tua mãe mudou tua vida.
- Considerações finais – O assunto da hakitía é de domínio público tanto para judeus sefardim quanto para ashkenazim, e durante muitos séculos a hakitía não só representou aos judeus marroquinos, como também sua própria identidade e o orgulho de sua ascendência sefardita.
A hakitia sofreu uma grande perda de falantes para o francês em razão das escolas da Aliança
Israelita Universal no Marrocos; os mais jovens pensavam que se comunicar em hakitía era
coisa de analfabeto e idoso. Passaram ter certa rejeição pela língua, o que produziu fortes
barreiras sociais entre os que a falavam e os que negavam conhecê-la, mesmo sabendo que
é parte de sua cultura e de seu passado. Ainda que alguns sustentem que hoje em dia a hakitía esteja em desaparecimento, nas últimas décadas se evidencia em alguns países o estudo, o uso e a preservação da língua desejando um retorno a este idioma como símbolo representativo de nossos antepassados e como respeito aos nossos costumes.
A hakitía é essencialmente oral, o que traduz a modéstia de documentos oficiais ou religiosos na escrita. Apesar de a língua não possuir um território definido e de só a USP — através do
Centro de Estudos Judaicos — ser referência nos 22 países que englobam a América Latina, em hebraico, não existe um centro de pesquisa e informação no Brasil exclusivamente destinado aos estudos da hakitía; mesmo assim, ainda há o esforço de raras vozes que clamam no deserto, a fim de perseverar na coleta das escassas informações dessa linguagem tão rica em expressões que variam da singeleza dum Shalom a mais eloqüente oração ao Eterno. [3]
Fontes:
[1] Arquivo Histórico Judaico Brasileiro – Por Álvaro Cunha, jornalista e professor/ Especial para o AHJB: http://www.ahjb.org.br/ahjb_pagina.php?mpg=03.00.00.00
[2] Blog – Linguá Hebraica – Por Cássia Scheinbein -Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós- graduação em Estudos Lingüísticos da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais – Orientadora: Profa. Dra. Maria Antonieta Amarante de Mendonça Cohen – Data da Defesa: ano de 2006: http://linguahebraica.blogspot.com.br/2008/07/lnguas-em-extino-o-hakitia-em-belm-do.html
[3] Por Álvaro Cunha – Travessias número 01 revistatravessias@gmail.com – Pesquisas em educação, cultura, linguagem e arte.http://www.unioeste.br/prppg/mestrados/letras/revistas/travessias/ed_001/cultura/PELOS%20%20%20%20%20MEANDROS%20DA%20HAKIT%CDA.pdf
Coordenador: Saul Stuart Gefter
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