Surgidos na Alemanha do século XIX, sob a designação de Wissenschaft des Judentums33 (a ciência do judaísmo), os Estudos Judaicos, mesmo nas evoluções pelas quais passaram, sempre mantiveram seu caráter multidisciplinar[1]. Nesse período, a Wissenschaft des Judentums enfatizava filologia, história/historiografia, filosofia e religião judaicas [2] , época de predominância de um cientificismo historicista. Dando início, no século passado, ao seu processo de consolidação nos círculos acadêmicos europeus e norte-americanos (hoje incluindo israelenses, latino-americanos), os Estudos Judaicos permanecem como “um campo que interpreta os judeus, o judaísmo e a experiência judaica com análises altamente desenvolvidas e com perspectivas variadas” [3]
judeus adventistas Nova Zelandia
Essa variedade de perspectivas, conforme Leah Hochman sustenta em seu artigo Approaches to Jewish Studies: teaching a methods class, significa pensar os Estudos Judaicos “alternativamente (às vezes, simultaneamente) como pesquisa cultural, étnica, histórica, religiosa, ou filosófica”[4], e também pensá-los, ainda segundo a autora, como campo de pesquisa análogo à literatura comparada. Semelhantemente, David R. Blumenthal, em seu artigo Where do the “Jewish Studies” belong?, sustenta que, devido à aplicabilidade de muitas disciplinas humanísticas aos Estudos Judaicos, eles devem ser vistos não como um método, mas como um campo de dados [5]. Com essa abertura metodológica, marcada pela flexibilidade de vários métodos de análise, entendemos ser relevante a inserção da ciência médica nos Estudos Judaicos, a fim de também consolidar uma ligação com as literaturas de expressão/temática judaica. Essa interdisciplinaridade carece muito de pesquisas, especialmente no Brasil, e é por essa razão que escolhemos a obra de Moacyr Scliar, cuja literatura funde ficção, judaísmo e medicina.
É notória a profunda ligação do povo judeu com a medicina através das gerações. Visto que falamos sobre o surgimento da Wissenshaft des Judentums como origem dos Estudos Judaicos, é oportuno lembrar que na época do Wissenshaft, poucas obras foram publicadas sobre a medicina na Bíblia e no Talmud. Entre essas obras destacamos a Biblisch-Talmudische Medizin, de Julius Preuss (1861-1913), médico e judeu alemão (conhecido como o pai da pesquisa médica judaica), e publicada em 1911. Uma obra que sobressai às anteriores do mesmo período, “por meio da qual adquirimos uma exposição fidedigna, ampla e erudita sobre o assunto, pelas mãos de um médico de primeira classe, por um lado, e através de um filólogo semita, que fez da história da medicina o estudo da própria vida, por outro[6]. Para entendermos suscintamente o que é a medicina bíblico-talmúdica, é imprescindível uma elucidação não só da ética médica judaica, mas também dos conceitos judaicos do binômio relacional médico-paciente no contexto da doença.
Na novela O exército de um homem só, de Moacyr Scliar, publicada em 1973, por exemplo, vemos uma alusão a um rabino que tinha conhecimento da medicina judaica. O pai de Mayer Guinzburg aborda Freud quando este está de passagem área por Porto Alegre, a fim de pedir conselhos para o filho “Capitão Birobidjan”:
O senhor me lembra muito um rabino que nós tínhamos na Rússia, um rabino formidável, a gente contava os problemas, ele fechava os olhos, pensava um pouquinho, e pronto, dizia o que as pessoas tinham de fazer. Não errava nunca! Problemas de marido com mulher, de pais com filhos, de dinheiro, de doença – resolvia tudo! Tudo! [7] O Sr. Guinzburg vê em Freud uma projeção de um rabino dedicado aos cuidados às pessoas do shtetl, quando a família Guinzburg ainda se encontrava na Rússia, antes de fugir dos pogroms para o Brasil. Nessa novela, o rabino russo suscita reflexões em torno da ética médica judaica, figurando como um representante dos muitos rabinos que, ao longo da história, dedicaram-se profundamente ao exercício da medicina. A seguinte e ilustrativa história midráschica evoca, de certo modo, essa personagem de Scliar:
Rabi Akiba
Rabi Ismael e Rabi Akiva estavam passeando nas ruas de Jerusalém, acompanhados por outra pessoa. Encontraram um homem doente que lhes disse: “Mestres, dizei-me como posso ser curado”. Eles responderam: “Faze isso e aquilo e serás curado”. O doente replicou: “Quem me afligiu?” Eles responderam: “Foi Deus, louvado seja ele”. O doente voltou a perguntar: “Se Deus me afligiu, vós estais interferindo em assunto que não vos diz respeito. Deus me afligiu e vós quereis curar-me? Não estareis transgredindo a sua vontade?” Os dois rabis perguntaram então: “Qual é a tua profissão?” E o doente respondeu: “Eu sou um lavrador, e aqui está a foice, na minha mão, para podar a videira”. Os rabis voltaram a perguntar: “Quem criou o vinhedo?” E o doente respondeu: “O Senhor, louvado seja”. Os rabis retrucaram então: “E tu te intrometes numa área que não te pertence? Deus criou o vinhedo e tu cortas suas frutas?” O doente defendeu-se: “Vós não vedes a foice em minha mão? Se eu não arar o solo, não semear, não fertilizá-lo, não podar, nada crescerá”. Os dois rabis, então, concluíram: “Homem insensato. Será que tu nunca em vida ouviste que está escrito que para os homens seus dias são como a grama e como as flores do campo florescem (Sl 103:15). Do mesmo modo que se não aramos, podamos e fertilizamos o solo, as árvores não produzirão frutos, e se a fruta produzida não é regada e fertilizada, ela vai morrer, assim se passa com o corpo humano. As drogas e os remédios são os fertilizantes e o médico é o lavrador do solo.[8]
O paralelo do médico com o lavrador, nesse texto rabínico, ilustra a concepção judaica da função do médico em seu cuidado ético com o ser e o corpo humanos: ser um mensageiro de Deus no processo da cura, tendo a autorização divina para realizar a cura clínica da doença. Mesmo que o texto não mostre as recomendações médicas dadas pelos dois rabinos para o doente, que não entendia a parceria entre Deus e os médicos para a cura, a ausência textual desses detalhes revela a presença dessa parceria[9].
Ao mesmo tempo, Akiva e Ismael alertavam contra o excesso religioso que levasse, desequilibradamente, a um entendimento de que todas as formas de cura médica humanas deveriam ser rejeitadas, para que o doente só realizasse preces a fim de que o Eterno restabelecesse a saúde[10].
Nesse sentido, examinemos versículos da primordial e central fonte da ética e consequentemente da ética médica judaicas no contexto dessa parceria, a Torá, os quais têm uma ligação com a história de Akiva e Ismael: Êxodo 15:26 e 21:18-19, sendo essa última a que lida com a humana obrigação ética da assistência médica:
E disse: “Se ouvires atentamente a voz do Eterno, teu Deus, fizeres o direito a Seus olhos, escutares Seus mandamentos e guardares todos os Seus estatutos, toda a enfermidade que enviei aos egípcios, não porei sobre ti [Israel], pois eu sou o Eterno que te cura” ([Êxodo 15:26] [11] E quando brigarem homens e ferir um homem e ferir o homem a seu próximo com pedra ou com punho, e este não morrer, e ficar de cama. Se se levantar e andar pela rua por sua própria força, será livre aquele que o feriu; somente lhe dará o dinheiro pelo tempo que perdeu e pela paga de sua cura ([Êxodo 21:18-19][12] A justaposição desses dois textos da Torá deve-se à questão suscitada pelo médico judeu Auro del Giglio: “uma das dúvidas mais salientes no judaísmo é como se concebe a figura do médico em um contexto religioso onde o Todo-Poderoso é Quem cura” (2004, p. 80). Reforçando a lição dada pela história midráschica (de que assim como o lavrador pode cuidar da terra, assim também o médico do corpo humano), não há na primeira passagem bíblica “qualquer proibição ao médico de praticar sua profissão, embora ele sempre deva reconhecer que Deus é quem na verdade cura e que ele, médico, é apenas um instrumento do Senhor, realizando uma missão divina”.[13]
cura
Assim, na cosmovisão judaica, o médico “deve sempre ter em mente que é um intermediário entre Deus e o homem doente no seu processo de cura”[14]. Paralelamente, William Osler reconhece a relevância da fé no processo clínico da relação médico-paciente. Ele enfatiza uma “notável característica da terapêutica moderna”, o “retorno aos métodos psíquicos de cura pelos quais a fé em algo é sugerida ao paciente”, fé que “é o grande nivelador da vida. Sem ela, o homem não pode fazer nada”, de modo que ela “é o ouro potável, a marca do sucesso na Medicina” .[15]Osler ensinou que os médicos devem apreciar, e não ignorar, as suas “próprias curas efetivadas pela fé”, baseado num ensinamento de Galeno: “Ele [Deus] cura mais a quem mais n’Ele confia”[16] Essa concepção osleriana do médico frente à fé dialoga com a visão do judaísmo sobre o médico como intermediário clínico.
Ainda em relação ao texto de Êxodo 15:26, é interessante e oportuno ressaltar como rabinos o interpretam no contexto da aliança entre Deus e o povo judeu, quando da entrega das mitsvôt (mandamentos). Para os rabinos Schlomo ben Itsháki, conhecido por seu acrônimo Raschi (1040-1105), francês, e Meir Leibush ben Yehiel Michael Weiser, conhecido pelo acrônimo Malbim (1809-1879), russo, o relacionamento entre Deus e Israel é comparado à relação médico-paciente no contexto da determinação das prescrições médicas. Para Rashi, a expressão “Eu sou o Eterno que te cura” significa que as leis da Torá foram dadas para salvar o homem das doenças. Nesse sentido, o rabino francês “usa a analogia de um médico que diz para o seu paciente não comer certos alimentos a fim de que estes não conduzam o paciente ao risco da doença” (ROSNER, 1994, p. 167. Tradução nossa). Já o pensamento de Malbim é sintetizado da seguinte forma, por Rosner, em Medicine in the Bible and the Talmud:
Ele declara que as leis da Torá foram entregues por Deus para Israel não como um senhor dando ordens a seu escravo, mas como um médico ordenando a seu paciente. No primeiro caso, o senhor se beneficia, não o escravo; no último caso, o paciente, e não o médico, é quem é curado das enfermidades. Similarmente, os estatutos de Deus são para o nosso bem, não para o d’Ele (1994, p. 167. Tradução nossa).
Refuáh – רופא
Não fortuitamente, as palavras hebraicas para médico e cura procedem da mesma raiz verbal que denota “curar e ser curado”, “sarar e ser sarado”, “restaurar e ser restaurado”[17]: rofê (médico) e refuáh, ou rifút (cura). A palavra médico ocorre pela primeira vez na Torá em Gênesis 50:2, em seu plural rofím (médicos): “E ordenou José a seus servos médicos, para embalsamar a seu pai; e embalsamaram os médicos a Israel”.[18] Já em Jeremias 46:11, o plural refuôt aparece referindo-se à remédios ou medicamentos; em Jeremias 8:22, há menção a rofê no sentido de médico que lidava com uma medicina herbácea .[19]. Ademais, Auro del Giglio ressalta a importância da hermenêutica judaica como uma, entre outras alternativas, para uma cosmovisão genuinamente judaica da medicina. Os rabinos sempre buscaram métodos derivados da exegese judaica, num processo de estabelecimento de interpretações que analisam a concatenação das letras e das palavras hebraicas, que muitas vezes funcionam como potências de outras palavras, levando a conceitos profundos.
Fundamentados também na guematria, método pelo qual o texto da Torá é investigado com base no valor numérico do álef-beit (alfabeto hebraico), os rabinos também chegaram a conclusões impressionantes que abrangem a relação do judaísmo com a medicina. Por exemplo, parafraseando reflexões do rabino Glazerson, de sua obra Torah, light and healing: mystical insights into healing based on the Hebrew language, de 1993, del Giglio ressalta a relação médico-paciente no tratamento clínico: “segundo Glazerson, as letras que compõem a raiz da palavra tratar (rafá), e médico (rofê), em hebraico, estão presentes também na palavra resplandecência (peêr); desta forma, conforme del Giglio, “a saúde corresponderia a uma condição de equilíbrio resultando em estado dotado de uma beleza radiante” (2004, p. 79). Portanto, o rofê em sua relação clínica com o holí (doente) deve tratá-lo com a irradiação da misericórdia e do amor.
Com respeito à segunda passagem supracitada da Torá, Êxodo 21:18-19, ela é a mais usada pelo judaísmo para ressaltar não só a permissão, como também a obrigação do exercício ético da medicina. A tradução literal da última frase do versículo 19, verapô yerapê, é “e curar, ele será curado”, além da tradução por extensão que diz que o agressor toma a responsabilidade de pagar pela cura do vitimado pela agressão física. Conforme o Talmud, Tratado Berakhôt 60a, o rabino Abaye disse que “foi ensinado na Academia de Rabi Ischmael: (está escrito), ‘ele o fará ser completamente curado’. Disso aprendemos que foi dada permissão para o médico curar”.[20] Noutro tratado talmúdico, Bava Kama 85a, encontramos a ratificação dessa interpretação: “A Academia de Rabi Ischmael ensinou: (as palavras) ‘e curar, ele será curado’ (são a fonte) de onde se pode derivar que essa autorização foi garantida (por Deus) para médico humano curar”.[21] Ademais, tomando a curiosidade de ler a última frase, repetidas quase igualmente em ambos os tratados talmúdicos em que aparecem, descobrimos algo interessante. O original de Berakhot 60a é: mikân schenitná reschút lerofê lerapôt e o de Bava Kama 85a é Mikán schenitân reschút lerofê lerapôt, respectiva e literalmente, “daí (do versículo) é que foi dada ao médico permissão para curar, para curas” e “daí (do versículo) é que foi dada ao médico autorização para curar, para curas”. Noutras palavras, não só o texto bíblico insiste na repetição da palavra, ou da ideia de curar, mas também os textos talmúdicos. Comentaristas rabínicos posteriores à era talmúdica, os tossafistas (do hebraico tossafôt, adições), que viveram do século XII à metade do XV, ensinaram que a repetição, no texto da Torá, “implica que ao médico incumbe, pois, curar tanto as enfermidades infligidas ao homem pelo homem assim como aquelas infligidas por Deus ao homem”.[22] Quanto à repetição de curar no Talmud, interpretamos que denota a cura dos vários tipos de enfermidade.
Maimonides II
Para Ramban, acrônimo de Rabi Moshe ben Nahman ou Nahmânides (1194-1270), rabino e médico espanhol, a obrigação da cura através da medicina decorre do mandamento ético: “Amarás o teu próximo como a ti mesmo” (Levítico 19:18). Ramban faz uma leitura ético-médica desse versículo da Torá, que vê a medicina como a evidência do amor e da consideração pelo próximo, de modo que a prática médica abrange tanto os casos em que a vida está em perigo quanto as situações menos graves, “como a atenção médica para alívio da dor e promoção de bem-estar”.[23] Seguindo o mesmo princípio ético, Maimônides[24] (1135-1204), ou Rambam (Rabi Moshe ben Maimon), rabino e médico também espanhol, interpreta a restituição de Deuteronômio 22:1-3 como sendo não só a da propriedade perdida, mas também da saúde (1993, p. 151). Em seu Tratado sobre a higiene, por exemplo, Rambam recomendou “que o médico alivie sempre o paciente de seus problemas psicológicos que lhe trazem desânimo. Isto reforçará a saúde geral do doente e é o primeiro passo no tratamento de todas as pessoas doentes”.[25] Portanto, no contexto da ética médica judaica, elencado e sumariado neste trabalho, a relação médico-paciente não é apenas concebida como a medicina do corpo, mas também como a medicina da alma.
A ética judaica é fundamentada em princípios morais e conceitos basilares do judaísmo, com uma vasta obra, sendo o tratado talmúdico Pirkê Avôt (ética dos pais, sábios rabinos) uma das mais conhecidas. Por ora, é suficiente exemplificar uma expressão rabínica que conceitua a ética judaica: guemilút hassadím[26], os atos de bondade que o judeu, medicina e o judaísmo, sendo indissociável da ética médica judaica. O estudo e a prática da Torá elevam o intelecto e o espírito do indivíduo para uma canalização das reflexões de uma vida ética para o benefício da coletividade humana e animal, num cotidiano servir ao Criador [27]põe em prática para o benefício de seus semelhantes, judeus e não-judeus[28] (Cf. Êxodo 23:9).
O médico Daniel Eisenberg, em seu artigo Why Jewish medical ethics, chama a atenção para um fato que distingue a abordagem judaica da abordagem secular em relação à medicina, no plano ético. É a colocação do bem-estar da sociedade antes do bem-estar do indivíduo humano, de modo que, no judaísmo, o indivíduo é de suprema importância. Eisenberg se baseia numa relevante reflexão do atual rabino-chefe do Reino Unido, Jonathan Sacks, para enfatizar esse princípio judaico:
Em termos éticos, o judaísmo foi a primeira religião a insistir na dignidade da pessoa e na santificação da vida humana. Pela primeira vez, o indivíduo não mais poderia ser sacrificado pelo grupo. O assassinato não é apenas um crime contra o homem, mas também um pecado contra Deus.[29]Conforme Sacks, essa postura do judaísmo foi tomada num contexto hostil à individualidade humana, com impérios, estados e nações que cultuavam a coletividade. A Torá ensina que o ser humano foi criado à imagem de Deus, de modo que sendo Adam andrógino inicialmente, foi criado como um único indivíduo, não como um grupo de pessoas, para ensinar que quem salva uma única vida, salva o mundo inteiro, mas quem destrói uma única vida, destrói o mundo inteiro, conforme o Talmud. Eisenberg vê a distorção desse princípio judaico quando, por exemplo, “o assassinato se torna uma ‘morte misericordiosa’ ou a destruição da vida de um feto se torna uma ‘escolha pessoal’”, de modo que “as regras básicas da dignidade humana, sobre as quais a sociedade deveria estar solidificada, sofrem erosão debaixo dos nossos pés” (Tradução nossa.). É justamente explorando o último exemplo suscitado por Eisenberg, o aborto, que faremos considerações a respeito a diferença entre a ética médica judaica e a ética médica ocidental, influenciada pela doutrina católica. Assim, o princípio geral talmúdico, quem salva uma vida, salva o mundo inteiro, quem destrói uma vida, destrói o mundo inteiro, deve ser visto também casos extremamente excepcionais, como o aborto.
aborto
Como regra geral e/ou síntese, “o judaísmo nem bane, nem libera o aborto totalmente”.[30] No geral, embora a ética médica secular não seja fundamentada em fontes de procedência religiosa, observa-se certa influência dos ditames católicos, mas que não são, contudo, seguidos por todos os médicos. Já a ética médica judaica procede dos princípios da religião judaica, tendo a Torá como sua fonte de autoridade para a conduta ética, seguindo as interpretações dos sábios do Talmud e de períodos pós-talmúdicos40, o que não impede o diálogo entre a fé judaica e a ciência, conforme Landman:
A grande contribuição dos judeus no campo da medicina e de outras ciências mostra a imensa harmonia existente entre as normas científicas e a tradição judaica, derrubando o mito da contradição entre ciência e religião. O judaísmo foi penalizado pelos que não o conhecem, pela crença comum em nossa cultura de que haveria uma oposição entre os dogmas teológicos e as descobertas científicas. Tal oposição não existe no judaísmo.
A fé judaica é livre destes dogmas e tradicionalmente é apta para aceitar o progresso científico em qualquer campo (1993, p. 129).
O aborto é objeto de muitas polêmicas no campo da ética médica, especialmente o aborto provocado, ou induzido. É esse assunto que suscita o embate que mais põe a ética médica judaica em diferença frontal com a ética médica ocidental (especialmente quando influenciada pela igreja católica). O catolicismo se recusa a aceitar a prática do aborto em qualquer circunstância, vendo-o como um homicídio. Para a igreja romana, a vida humana se inicia na concepção, de modo que o ovo fertilizado é considerado um ser vivo com todos os direitos. Assim, mesmo diante de uma gravidez que coloque a mãe em risco de morte, os católicos ainda consideram a impossibilidade moral do aborto. Para o judaísmo, contudo, “o feto não é considerado uma pessoa antes do nascimento”, pois é “parte do organismo materno até o momento em que emerge do útero”. Assim, “nos primeiros 40 dias de gravidez, o ovo fertilizado é considerado apenas um fluido sem forma” (LANDMAN, 1993, p. 199). É após os 40 dias que o feto adquire “um caráter de personalidade e, a não ser que ele ameace a vida materna, ele não poderia ser eliminado” (1993, p. 201). A legislação judaica diz que o aborto deve ser realizado preferencialmente nesses primeiros 40 dias de gravidez. Conforme a tradição judaica, a vida da mãe tem precedência sobre a do feto, de modo que, conforme Landman, “quando o trabalho do parto ameaça a vida materna, é permissível destruir o feto para salvar a mãe” (1993, p. 201). Já em caso de estupro ou incesto não há um consenso, devendo as autoridades judaicas julgarem a questão caso a caso, considerando o fato de que o peso emocional/psicológico do nascimento e da criação de uma criança concebida nessas circunstâncias “é muito grande para a mãe suportar” (GLASMAN, 2011, p. 1).41
Fonte: https://ufpe.academia.edu/IntersemioseRevistaDigital
INTERSEMIOSE • Revista Digital • ANO I, vol. 01, n. 01 • Jan/Jul 2012 ◄
Autor: Fernando Oliveira Santana Júnior (então doutorando em Letras Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Medicina, ética e judaísmo na literatura: da anamnese à narrativa do doente em A Majestade do Xingu, de Moacyr Scliar
[1] Cf. YERUSHALMI, 1996, p. 83-84)
[2](LEVY, In: PROCEEDINGS OF THE 37TH ANNUAL CONVENTION OF THE ASSOCIATION OF JEWISH LIBRARIES, 2006, p. 04)
[3] (HOCHMAN, In: TEACHING THEOLOGY AND RELIGION, 2005, p. 80. Tradução nossa).
[4] (In: TEACHING THEOLOGY AND RELIGION, 2005, p. 79. Tradução nossa)
[5] (In: JOURNAL OF THE AMERICAN ACADEMY OF RELIGION, 1976, p. 535)
[6] ” (ROSNER, In: MEDICAL HISTORY, 1975, p. 376. Tradução nossa)
[7] (SCLIAR, 1999, p. 32).
[8] (apud LANDMAN, 1993, p. 148-149).
[9] Conforme o médico Jayme Landman, em seu livro Judaísmo e medicina, “a ética judaica baseia-se numa dialética na qual Deus de um lado e a humanidade de outro desempenham um papel ativo” (1993, p. 139), pois “a aliança refletida nos estudos talmúdicos de interpretação criativa capacita os judeus a se sentirem livres para aplicar a razão humana na compreensão e na aplicação da Torá” (Idem, 1993, p. 140).
[10]Segundo Scliar, “chama a atenção, nesse texto [midráschico], a comparação entre o corpo e a planta; em ambos os casos, trata-se da natureza, sobre a qual o ser humano tem a possibilidade de intervir, sem necessariamente recorrer à mediação divina” (2001, p. 29).
[11] TORÁ – A LEI DE MOISÉS, 2001, p. 200).
[12] TORÁ – A LEI DE MOISÉS, 2001, p. 220).
[13] (LANDMAN, 1993, p. 148).
[14] ” (DEL GIGLIO, 2004, p. 81)
[15] (apud DEL GIGLIO, 2004, p. 61).
[16] (apud DEL GIGLIO, 2004, p. 61).
[17] (KIRST et al., 2002, p. 231-232)
[18] (TORÁ – A LEI DE MOISÉS, 2001, p. 148).
[19] (Cf. WILLIAMS, 2004, p. 94), 36 Para um entendimento detalhado e amplo sobre a medicina na Bíblia e no Talmud, bem como em períodos posteriores, recomendamos a leitura de Judaísmo e medicina, de Jayme Landman (1993), Medicina, judaísmo e humanismo, de Auro Del Giglo (2004), Medicine in the Bible and the Talmud: Selections from classical jewish resources, de Fred Rosner (1994). Quanto à Bíblia e ao Talmud, convém apenas registrarmos a síntese de Jayme Ladman sobre esse assunto extremamente vasto: “embora a Bíblia não seja um livro de medicina, suas narrativas, seus preceitos e suas leis contêm informações abundantes sobre a estrutura do corpo humano, doenças, traumas, curas e sobretudo medidas preventivas e sanitárias. Por exemplo, as leis contra a lepra, no capítulo XIII do Levítico, podem ser consideradas como primeiro modelo, na história dos povos, de legislação sanitária (1993, p. 26)”. Já no Talmud encontramos muitas discussões realizadas por rabinos que também eram médicos consistindo em “textos de medicina preventiva e curativa, de anatomia e de patologia, e de interpretação das leis bíblicas dietéticas e de pureza”, frisando a influência das medicinas grega, babilônica e persa (Idem, 1994, p. 48).
[20] (THE BABYLONIAN TALMUD, 1952. Tradução nossa)
[21] (THE BABYLONIAN TALMUD, 1952. Tradução nossa.).
[22] (DEL GIGLO, 2004, p. 81)
[23] (LANDMAN, 1993, p. 151).
[24] 37 Chamado por Osler de o príncipe dos médicos, Rambam escreveu obras médicas, por exemplo, Compêndio das obras de Galeno, Comentário dos Aforismas de Hipócrates, Tratado sobre a asma, Tratado sobre a higiene, Comentários sobre drogas (Cf. DEL GIGLIO, 2004, p. 112-115; LANDMAN, 1993, p. 66-76).
[25] (apud DEL GIGLIO, 2004, p. 113)
[26]Sua fonte é Pirkê Avôt I:1: “Shimon, o justo […] costuma dizer: ‘o mundo se mantém sobre três coisas: a Torá, o serviço Divino [avodá, em hebraico] e a beneficência [guemilut hassadím]”. Esse tripé que caracteriza a cosmovisão judaica em sua expressão ética condiz com as reflexões deste capítulo sobre a relação entre a
Desde os primórdios da humanidade, registros contendo princípios éticos médicos foram descobertos: o código de Hamurabi, papirus egípcios e os escritos de Hipócrates são alguns exemplos. Um mérito do legado de Hipócrates, especialmente seu juramento, como lembra Avraham Rosenberg (2003, p. 390), é o fato de ser historicamente um código escrito e organizado de um modo lógico que faz uma descrição da devida relação médico-paciente. Já na era moderna, a obra de Percival, de 1803, tem sido considerada a base da ética médica das fundações dos códigos médicos profissionais do Ocidente. Em seu sentido moderno, a ética médica é definida como o campo em que princípios éticos gerais e fundamentais são aplicados a uma variedade de situações da prática clínica e à pesquisa médica. Recentemente, a expressão foi substituída ou intercambiada por “bioética médica”, abrangendo princípios éticos de outras áreas que tenham relação com a saúde. Assim, áreas como farmácia, enfermagem, psicologia e terapia ocupacional, por exemplo, mesmo que não sejam relacionadas diretamente à prática da medicina, são incluídas, envolvendo questões ambientais, empresariais, sociais, entre outros exemplos (Cf. ROSENBERG, 2003, p. 390). Nesse sentido, conforme Mordechai Halperin, tendo um desenvolvimento rápido no momento crucial em que o Ocidente teve que lidar com os horrores da fatídica Segunda Guerra, a ética médica “incorporou filosofia, religião, direito, história, psicologia, sociologia e educação” (HALPERIN, In: ASSIA – JEWISH MEDICAL ETHICS, 2004, p. 45). Consequentemente, se antes somente os médicos se preocupavam com a ética médica, agora ela interessa não só a médicos, mas também a especialistas de outras áreas, bem como ao público mais amplo.
A ética médica judaica é uma das áreas de aplicação da ética judaica. Tendo um passado antigo, a ética médica judaica em sua expressão moderna foi conceitualmente desenvolvida sob o desdobramento da ética médica geral, em suma, uma instituição moderna com um passado atuante desde a Bíblia e o Talmud. Originalmente como Jewish medical ethics, essa expressão foi criada pelo também médico Lord Rabino Immanuel Jakobovits (1921-1999). Cunhada por ele, torna-se o nome de sua tese de doutorado: Jewish medical ethics: a comparative and historical study of the jewish religious attitude to medicine and its practice, publicada em livro em 1959 (Cf. HALPERIN, In: ASSIA – JEWISH MEDICAL ETHICS, 2004, p. 56).
[27] (Cf. BUNIM, 2001, p. 21-25).
40 Cf. LANDMAN, 1993, p. 15; HALPERIN, In: ASSIA – JEWISH MEDICAL ETHICS, 2004, p. 46.
[28] 39 E o relacionamento com os não-judeus é outro campo de aplicação da ética judaica, como cumprimento do “Amarás o teu próximo como a ti mesmo” (Levítico 19:18).
[29] (SACKS, 2000, p. 75. Tradução nossa.)
[30] (GLASMAN, 2011, p. 01).
Coordenador: Saul Stuart Gefter
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