- Introdução – O artigo destaca o papel das mulheres cristãs-novas na preservação do Judaísmo, religião de seus antepassados. Com a proibição da prática da religião após a conversão forçada de 1497 e o estabelecimento da Inquisição em 1536, o criptojudaísmo era uma religião praticada dentro do lar, a “portas a dentro”, tornando essencial o papel das mulheres.
Diversos trabalhos sobre a condição feminina foram publicados em Portugal e no Brasil nos últimos anos. Nenhuma pesquisa existe, porém, que trate da condição da mulher portuguesa de origem judaica, a cristã-nova ou marrana, como vem denominada muitas vezes pela historiografia contemporânea.
As informações que temos sobre o comportamento, as crenças, as atitudes da mulher cristã-nova, que ficaram registradas nos processos da Inquisição constituem uma fonte rara e inexplorada para a história da mulher e da família na cultura portuguesa, dos séculos XVI ao XVIII.
No aniversario dos 500 anos da expulsão dos judeus da Espanha foram publicados numerosos estudos sobre os sefaradins, mas não abordaram a temática da mulher marrana, e os que foram escritos nos últimos anos utilizando a documentação inquisitorial referem-se especificadamente as feiticeiras e beatas.
Entre as raras referências à mulher marrana encontramos uma “Responsa Rabínica”, na qual a mulher é descrita como líder espiritual e também o trabalho biográfico pioneiro de Cecil Roth sobre Gracia Mendes, recentemente romanceado em “Senhora” . Sobre as portuguesas que partiram para o Novo Mundo em seguida ao descobrimento, as noticias também são escassas e nenhum tratamento satisfatório existe, como nos diz Charles Boxer, sobre o lugar que ocupou a mulher na sociedade ibérica colonial.
Estimativas demográficas apoiadas em bases cientificas, sobre os cristãos-novos no Novo Mundo, não são possíveis de se fazer, pois a qualificação “cristão-novo” não acompanha os nomes dos primeiros colonizadores que ficaram registrados na história. A única fonte que nos permite localizá-los, aproximadamente, durante a época colonial, são os arquivos inquisitoriais.
- No Brasil Colonial – O Brasil foi o refúgio preferido pelos portugueses que procuraram escapar das malhas da Inquisição portuguesa, e sua história, apesar de inseparável de sua cultura portuguesa de origem, apresenta aspectos e características que devem ser entendidas e estudadas dentro do contexto brasileiro colonial. De uma maneira geral, a postura dos portugueses na América colonial em relação à condição feminina, foi mais dura, rigorosa e conservadora do que a dos espanhóis. Essa postura se aplica não somente à situação da mulher, mas também a todo sistema de organização colonial, que não permitiu nas colônias lusitanas, imprensa, Universidade, ou a livre leitura. A mulher no Brasil nunca alcançou o “status” da mulher da América Espanhola, apesar das leis discriminatórias terem sido violadas ininterruptamente pelos colonos, nas suas vivências quotidianas. Havia uma rigorosa punição aos candidatos a postos oficiais e honoríficos, de se casarem com mulheres de ascendências judaica, porém o comprometimento sanguíneo foi uma constante em todo o império espanhol e português.
- A mulher e a família cristã-nova no Brasil – Todas genealogias de famílias cristãs-novas que analisamos mostram que estavam mescladas com cristãs-velhas. Apesar de não possuirmos ainda material suficiente para podermos construir modelos e estruturas sobre a mulher e a família cristã-nova no Brasil, podemos, na base de processos conhecidos, erguer algumas hipóteses e propor algumas reflexões teóricas. Inicialmente devemos considerar que a religião judaica sobreviveu clandestina, no Brasil, durante os três séculos coloniais, do Rio Grande do Norte até a colônia de Sacramento . O papel que a mulher representou na continuidade desse cripto-judaismo foi fundamental. A religião católica era praticada por certas facções cristãs- novas como obrigação, enquanto outras seguiam com convicção o catolicismo. Todas generalizações sobre a religião dos cristãos-novos no Brasil é enganosa. No que diz respeito a condição feminina, esta variou de região para região dependendo da classe social e do tipo de família a que pertenciam. Os processos inquisitoriais contêm informações diversas sobre a sociedade colonial. A situação econômica das famílias, o nível cultural, o número de filhos, os costumes e as crenças podem ser reconstituídas através da análise dessa documentação.
- No Rio de Janeiro – Um estudo sobre as famílias cristãs-novas do Rio de Janeiro, presas no século XVIII, nos fornecem dados que nos permitem reconstruir a estrutura da família nuclear, onde pai, mãe e filhos solteiros viviam numa mesma casa, e os casados em outras, assim como da família patriarcal, residentes nas áreas rurais, em seus grandes engenhos de açúcar. Focalizando a família cristã-nova do Rio de Janeiro nesse período, não encontramos na sua organização familiar diferenças consideráveis da família crista-velha. Os portugueses, cristãos-novos como os cristãos-velhos reproduziram no Brasil a estrutura política e social do Reino e carregaram consigo a tendência de copiar os estilos de vida da pátria. No referente aos cristãos-novos as diferenças que notamos situam-se mais no plano da estrutura mental do que no comportamento exterior. À medida que a Inquisição reforçava sua fiscalização sobre a colônia, os cristãos-novos mais se fechavam entre si.
Não temos, porém, dados para afirmar, como num estudo feito sobre o México que 96% dos casamentos foram endogâmicos. A maioria dos cristãos-novos que viveram no Brasil na época colonial não eram cripto-judeus. A perseguição inquisitorial teve um cunho racista apoiando-se em informações obtidas sobre a origem étnica dos portugueses. Isso obrigava os cristãos-novos a jogar com a sorte, e construir “um mundo dentro do mundo”, onde se resguardavam, se apoiavam e se ajudavam mutuamente.
No inicio da colonização havia poucas mulheres brancas no Brasil e os portugueses cristãos-novos como cristãos-velhos mesclaram-se com índias e negras. O desenvolvimento econômico intensificou a imigração e os estudos genealógicos revelam um aumento na tendência endogâmica, principalmente depois que se intensificou a fiscalização inquisitorial.
Praticar alguns costumes judaicos ou adotar um nome do Velho Testamento tornou-se extremamente perigoso, particularmente depois que se efetuaram as primeiras prisões, na última década do século XVI. .As mulheres eram vistas pelos Inquisidores como as hereges mais perigosas. As “confissões” e “sessões de crença” nos permitem extrair um perfil do comportamento feminino e as “motivações que levaram a sua tenacidade e perseverança na manutenção da fé antiga.
Suas atitudes e opiniões sobre os cristãos-velhos, sobre a Igreja, sobre os padres, a confissão, os dogmas, sobre o Papa, sobre D’us, o amor, a morte e principalmente sobre a Inquisição, escoam das páginas dos processos e nos fornecem material, a vezes único, sobre o cripto-judaísmo na América. Uma questão premente que se propõe diz respeito aos mecanismos e ferramentas mentais que permitiram a transmissão do judaísmo durante três séculos nas selvas brasileiras.
- A história dos cristãos-novos no Brasil – é totalmente diferente da história das comunidades portuguesas da Europa, Amsterdã, Hamburgo, Florença, Veneza, Salônica, Bayone, etc., assim como do Norte da África e Levante, onde o retorno ao Judaísmo moldou um novo comportamento entre os cristãos-novos ou marranos. As novas comunidades judaicas consolidaram-se e adquiriram uma estabilidade que durou até o extermínio dos judeus durante o hitlerismo (o período nazista). Na América do Sul, o quadro que encontramos é diverso, a começar pelo fato de que nem discretamente a religião judaica era permitida. Queremos esclarecer en passant que os portugueses cristãos-novos dispersos pelos quatro cantos do mundo, não podem ser chamados marranos nem cripto-judeus apesar de descendentes deles. Foram marranos apenas aqueles que viveram no império espanhol e português. Os que retornaram ao Judaísmo na Holanda denominavam –se “judeus de nação portuguesa”. A sociedade cripto-judia constituída pelos cristãos-novos na América era multifacetada e apresentou grande mobilidade. Difícil acompanhar as atividades econômicas internacionais dos cristãos-novos, suas fugas seus heterônimos. Contudo, em certas regiões brasileiras, conseguimos traçar a origem de certas famílias a partir do século XVI. Apesar da escassez de mulheres nos primórdios da colonização, temos notícias de sua presença no engenho de S. Vicente desde meados do século XVI, quando em casa do capitão-mor Jeronimo Leitão, já se praticava a religião judaica.
O mesmo se deu no famoso engenho de Matoim, na Bahia, onde foram presas as primeiras mulheres da colônia. A literatura portuguesa da época descreve a mulher em geral como intelectualmente inferior ao homem, mantendo-se a imagem tradicional da tentadora e serva de Satã.
Uma exceção chamou-nos a atenção, principalmente por se tratar de um cronista português, portador da voz oficial da coroa, Duarte Nunes de Leão. Em sua “Descrição do Reino de Portugal” dedica três capítulos às admiráveis qualidades da mulher portuguesa em diversos campos. Descreve seu “valor e coragem”, e sua capacidade para artes e letras.
- A família era considerada como a menor unidade social onde a herança cultural e religiosa do judaísmo – Estudar a família e a mulher cristã-nova no Brasil obriga-nos a considerar alguns aspectos básicos do Judaísmo referentes à condição feminina, apesar da grande diversidade que apresentaram sempre as comunidades judaicas dispersas pelo mundo. Os judeus se adaptaram à sociedade entre as quais viveram e o conhecimento da estrutura familiar das comunidades judaicas em Portugal, antes da conversão forçada de 1497, é importante. Contudo, não temos nenhuma pesquisa nesse sentido.
Algumas características que encontramos no Judaísmo, de uma maneira ou de outra, influíram em todas comunidades judaicas, desde o período bíblico até os dias de hoje. Assim, por exemplo, no judaísmo tradicional a família era considerada como a menor unidade social onde a herança cultural e religiosa do judaísmo era transmitida. O casamento foi uma instituição que sofreu na diáspora muitas variações.
As interações do judaísmo com múltiplas civilizações, culturas, sociedades, durante 3.500 anos de história criou uma grande diversidade de costumes matrimoniais. Assim, apesar de sua origem religiosa comum, as práticas judaicas entre os ashkenazim e sefaradim se multifacetaram.
A influência da tradição hispano-rabínica não foi a mesma em todas as regiões, não é idêntico ao das mulheres nas comunidades sefaradins da Europa e Norte da África. No Brasil não houve uma reconversão ao Judaísmo, mas uma transferência de práticas abertas para secretas, num contexto social exclusivamente católico, As leis judaicas eram conhecidas apenas através da tradição oral.
A instituição do casamento e da família é exaltada e louvada e o celibato é condenado tanto no homem como na mulher. Um judeu que não tem mulher é considerado metade homem. Os rabinos não condenavam, como Paulo, os impulsos sexuais como “um mal em si”.
Depois do exílio da Babilônia e da conquista romana, a família judia adquiriu um novo sentido. Com a perda da pátria, a família tornou-se elemento social básico e foi importante para a evolução do Judaísmo, pois as relações familiares foram colocadas sob a direta vigilância de D’us. Quando os judeus voltaram do exílio da Babilônia os profetas exaltaram os retornados a se preocupar com seus lares, mais do que com o Templo.
No Brasil o sentido da família manteve-se principalmente na prática secreta do “shabat”, quando se dava a máxima comunhão entre os membros e a refeição era feita em conjunto, com toda a família e parentes reunidos, com velas acesas e uma prece que era pronunciada pela mulher.
Também na Páscoa se dava o encontro anual da família, quando o papel da mulher era fundamental. Quanto mais alta a esfera social, mais fraca eram as práticas clandestinas judaicas na colônia e mais assimilados eram os cristãos-novos aos costumes cristãos.
- Casa do judaísmo é muito mais importante do que a Sinagoga ou a escola – A Paraíba onde o status social da comunidade era inferior ao do Rio de Janeiro, o apego à religião judaica parece ter sido mais forte. Condições históricas diversas transformaram o lar, a casa, em um fator vital para sobrevivência do Judaísmo e para a preservação de uma maneira “judaica de viver”. A casa do judaísmo é muito mais importante do que a Sinagoga ou a escola. É da casa e da família que provem a maior força para a revitalização e continuidade do judaísmo. É na casa que se realizam as práticas religiosas e cerimoniais.
Numa retrospectiva histórica foi a família, com suas práticas judaicas, que tornou possível os judeus atravessarem 2.000 anos e sobreviverem. Existem, pois, dois fatores básicos para um homem ser judeus, a sinagoga e a casa. Para ser judeu é preciso que o homem conheça as escrituras sagradas e cumpra as ordens da Lei. Na “Sinagoga-escola”, as crianças aprendem a ler e a rezar e em casa cumprem os preceitos básicos do judaísmo, as leis dietéticas. Na casa é transmitida toda a memória histórica, com a manutenção das festas nacionais judaicas.
No Brasil, proibida a Sinagoga, a escola, o estudo, sem autoridades religiosas, sem mestres, sem livros, o peso da casa foi grande. A casa foi o lugar do culto, a casa tornou-se o próprio Templo. No Brasil Colonial, como em Portugal, somente em casa os homens podiam ser judeus. Eram cristãos para o mundo e judeus em casa. Isso teria sido impossível sem a participação da mulher.
- A Inquisição – Entre 444 processos de brasileiros analisados, principalmente na primeira metade do século XVIII, 228 pertencem ao sexo feminino. Em alguns autos-de-fé de Lisboa do século XVIII, o número de mulheres penitenciadas ultrapassou o número de homens. No auto-de-fé de 9 de julho de 1715 saíram penitenciados 78 réus dos quais 37 eram homens e 41 mulheres. No auto-de-fé de 26 de Julho de 1712 desfilaram 53 brasileiros. 50 foram acusados de judaísmo sendo 24 mulheres. A maior parte das mulheres cristãs-novas acusadas de Judaísmo recebeu como sentença Cárcere e Hábito Penitencial Perpétuo, enquanto as acusadas de outros crimes receberam penas leves. A Inquisição praticamente dizimou na Paraíba, em uma década, (1726-1736) uma tradicional comunidade cripto-judia, que podemos acompanhar desde o século XVI. O número de mulheres presas e condenadas ultrapassou o número de homens. Uma mulher, Guiomar Nunes, mãe de oito filhos, foi queimada.
Dos 444 processos referidos, 228 pertenciam a mulheres, 165 eram do Rio de Janeiro, 2 de Pernambuco, 35 da Paraíba, 2 de Minas, 2 do Pará, 12 sem lugar definido. Em Portugal, segundo um estudo de José Gentil da Silva, o número de penitenciadas femininas, como no Brasil variou no tempo e no espaço. Entre 1725 e 1735 em Coimbra, o número de pessoas do sexo feminino foi superior ao dos homens.
Dos três tribunais do Reino, foi o de Évora foi o que condenou o maior número de mulheres. 37%; Coimbra vem em segundo lugar com 35% e Lisboa 28% do total das vitimas. Dos que morreram na fogueira, 44% eram mulheres, 37% em Lisboa, 43% em Évora, e 53% em Coimbra. (16). O crime mais grave de que foram acusadas as portuguesas cristã-novas na colônia brasileira foi o da preservação do Sábado, seguido pela Páscoa e pelo jejum do “Dia Grande” (como era conhecida a festa do Yom Kipur).
Algumas vezes encontramos menção à festa da “rainha Ester” com a qual os cristãos-novos se identificava de maneira especial, pois Ester teve, como os cristãos-novos, de manter secreta a sua origem. Quando possível a carne de porco, lebre e coelho eram evitadas.
- Dois fatores foram fundamentais: a mulher e a Memória – Mulheres cristãs-novas apresentaram no Brasil uma resistência passiva e deliberada ao Catolicismo. Foram prosélitos, recebiam e transmitiam as mensagens orais e influenciavam as gerações mais novas. O Judaísmo persistiu no Brasil durante 285 anos como expressão religiosa e como mentalidade, graças a diversos desafios: a discriminação legal, o anti-judaísmo das massas, o estigma, a Inquisição . Dois fatores foram fundamentais: a mulher e a Memória. Os Inquisidores sabiam que as mulheres eram as principais transmissoras da heresia judaica e logo nos primeiros interrogatórios lhes propunham a questão: quem foi que lhe ensinou?
A memória histórica, como diz Pierre Nora é vida, sempre carregada pelos grupos vivos, aberta a dialética da lembrança e da amnésia, inconsciente de suas deformações sucessivas. Enquanto a história é a reconstrução sempre problemática e incompleta do que não é mais, a memória é um fenômeno sempre atual, um lugar vivido no presente eterno. A memória é afetiva e mágica e se apropria dos detalhes que a confortam, a história conhece apenas o relativo, a memória é um absoluto.
Ser cristão-novo significava lembrar-se. Lembrar-se de lembrar. Foi a transmissão dessa memória que não permitiu que o judaísmo desaparecesse no Brasil, apesar das perseguições e do medo. Algumas vezes, mas raramente, chegavam clandestinamente mensagens do Reino.
Essas mensagens transmitiam imagens do Velho Testamento e vinham no meio de caixotes de mercadorias ou trazidos pelos pilotos das naus, que algumas vezes eram cristãos-novos. Transcreveremos uma dessas mensagens, onde a memória histórica é evocada, desde o êxodo do Egito, o cativeiro da Babilônia, a perda da terra, os sonhos da redenção, até as torturas da Inquisição. Exalta a resistência a agressão. Trata-se de um pedaço de papel enviado de Lisboa em princípios do século XVII pela mãe de Antônio Rodrigues para o filho que vivia na Bahia. A extrema raridade de textos deste tipo confere-lhe uma importância primordial.
Durante três séculos a identidade judaica foi transmitida pela mulher e pela memória histórica. Enquanto a memória guardou e transmitiu as narrativas, mesmo sem a compreensão do real sentido da religião judaica, já mesclada com a simbologia cristã, a identidade se manteve. Gradativamente a memória histórica se apagou e o cripto-judaísmo desapareceu.
APÊNDICE Treslado do papel que se achou na algibeira dos calções de Antônio Rodrigues *
– Senhôr, D’us de Abraão, de Isaac, Deus de Jacó, rei e amparo de sua semente e filhos, Senhor, D’us de todo (…..)
– Vós fostes chamado D’us das Maravilhas pelas que usastes com nossos pais em os tirar do cativeiro do Egito e poder do Faraó.
– Vós sois chamado D’us das Grandesas, pelas que com os mesmos usastes, no deserto, por espaço de quarenta anos. Vós sois Senhor chamado D’us da Justiça pelo que lhe fizestes, em lhes entregar a terra que a seu pai Abraão prometeste.
– Sois Senhor chamado D’us das Vinganças, pelas que com o mesmo povo usastes tantas vezes até de todo o tirar de sua terra, e levar cativo para a Babilônia pelos grandes pecados ;
– vós Senhor chamado D’us das Misericórdias, porque todas as vezes, que nestes trabalhos chamaram por vos lhes acudistes e os livraste, como nesta Babilônia se viu e os trouxestes a suas casas, em possessão de suas terras, tanto apesar de seus inimigos, por caminho só a vós licito.
– Vós Senhor chamado D’us das Iras. Porque finalmente irado contra eles , por seus nefandos e abomináveis pecados , sem algum conhecimento dos benefícios de vós recebidos, dados de todo a ingratidão e desconhecimento de vosso Santo Nome, abominavelmente reverenciando os demônios, de todo os destruístes, cansastes e espalhastes pelas regiões do mundo, cativos e sujeitos, a tantos trabalhos e misérias, como padecem até agora e padecemos hoje vendo que todas as gentes, tem recolhimento e terras, onde cabem eles seus filhos , nós de todas as gentes, terras, nações, fomos aborrecidos, sopeados cativos e odiados, submetidos as que vos vedes, todos os dias presos, forçados, desterrados, penitenciados e açoitados e queimados: sem a isto nem ao que mais padecem nossos filhos de vitupério e nossos de desonra,e, assim toda nossa geração miserável e triste posta ao extremo que está , deixada de vosso amparo, submetido ao cruel e carniceiro inimigo nosso, que é toda a geração terrestre, sem termos, quem no valha , que nos acuda, se vos bom D’us não sois ;
– vivo sois vós Senhor vivo por certo o vosso Santo Nome, bem vedes nossos trabalhos e misérias, baste Senhor o castigo que temos padecido ,baste o tempo de vossa ausência, baste o mal de nossa peregrinação, acudi Senhor pois sois chamado, Pai e D’us de misericórdia, olhai que somos vossos filhos, olhai que somos vosso povo, olhai que somos semente de vossos servos Abrão, Jaco, Isaque.
Não permitais que sejamos consumidos, não permitais que sejamos acabados pelas mãos de cães que não conhecem vosso Santo Nome, que vós não reverenciam nem fazem obras de vós servirem, nem merecem tratar e, vosso Santo Nome tão abominavelmente como fazem, venha-lhes Senhor o que merecem , usai com eles de justiça e não permaneçam mais, não deis ocasião a que de todo pereçamos em suas mãos e posto que nossos pecados merecem muito mais, confessamos Senhor que não merecemos nossos bens por nossos males, nem merecemos levantar os olhos, a vossa celestial morada, mas Senhor D’us das piedades, com quem as haveis de usar senão com os filhos de vosso povo; a quem não vos conhece mostrai já quem sois e o poder de vossas obras, santificando vosso santo nome e mandando-nos nossa saude para que o mundo veja seu engano, e o vos demos louvores, pois não aguardando nossa conversão senão em meio de nossos pecados, chegais ao vosso poderoso (…) e nos arrebatais de meio deste lago, de onde não poderíamos nunca sair, nem levantar os olhos a vós, com limpeza, se com vossa extremada bondade e grande misericórdia nos não livrais, para que em vossa casa e nossa terra, debaixo de Nosso Rei e a sombra de vossos ministros vos louvemos com tanta razão não tendo mais que dizer, que com os corações cheios de alegria darmos graças cantando (…) para sempre. Ámen.
– Com as armas de Abraão andarei armado, com seu manto (cobrejado ?…)Abraão estava no meu corpo, que nunca me vereis preso nem morto nem em mãos de meus inimigos posto. Seja comigo Abraão meu guardador, não me ponhas em olvido, que sou grande pecador, da-me graça e favor para te poder servir e tuas carreiras, servir Abraão meu gram Senhor – laus Deo.
*Fonte : Inquisição de Lisboa. Cadernos do promotor de Lisboa nº 4. Ms. Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Lisboa, Manuscrito. [1]
Fontes:
[1] Por Dra. Anita Novinsky (professora de História na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP), Inquisição em Portugal e no Brasil, História do Brasil colônia (História Ibérica, História da família e da mulher, Inquisição), 1995: http://www.rumoatolerancia.fflch.usp.br/node/821
Coordenador: Saul S. Gefter
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