V’Zot HaBracha (Deuteronômio 33-34)
A Torá chega a sua conclusão com os seguintes versos:
Assim morreu ali Moisés, servo do Senhor, na terra de Moabe, conforme a palavra do Senhor.
E o sepultou num vale, na terra de Moabe, em frente de Bete-Peor; e ninguém soube até hoje o lugar da sua sepultura.
Era Moisés da idade de cento e vinte anos quando morreu; os seus olhos nunca se escureceram, nem perdeu o seu vigor.
E os filhos de Israel prantearam a Moisés trinta dias, nas campinas de Moabe; e os dias do pranto no luto de Moisés se cumpriram.
E Josué, filho de Num, foi cheio do espírito de sabedoria, porquanto Moisés tinha posto sobre ele as suas mãos; assim os filhos de Israel lhe deram ouvidos, e fizeram como o Senhor ordenara a Moisés.
E nunca mais se levantou em Israel profeta algum como Moisés, a quem o Senhor conhecera face a face;
Nem semelhante em todos os sinais e maravilhas, que o Senhor o enviou para fazer na terra do Egito, a Faraó, e a todos os seus servos, e a toda a sua terra.
E em toda a mão forte, e em todo o grande espanto, que praticou Moisés aos olhos de todo o Israel.
(Devarim/Deut. 34: 5 a 34:12)
No início do livro de Devarim/Deuteronômio observamos a centralidade da autoria Divina da Torá para o sistema de crença judaico. Além disso, vimos a importância da contribuição de Moisés, ou seja, que toda a Torá se acredita ter sido ditada por D’us a Moshé (Moisés). Estes últimos oito versos representam um desafio para essa posição.
Josué ou Moisés?
O Talmud oferece uma série de explicações:
O Mestre disse: “Yehoshua (Josué) escreveu o livro que leva seu nome e os últimos oito versos da Torá”. Esta declaração está de acordo com a autoridade que diz que oito versos da Torá foi escrita por Yehoshua [Bem Nun], como tem sido ensinado: Assim Moisés, servo do Senhor, morreu ali. Agora é possível que Moisés, estando morto, poderia ter escrito as palavras, Assim morreu ali Moisés? a verdade é, no entanto, que até este ponto Moisés escreveu, a partir deste ponto. Escreveu Yehoshua. Esta é a opinião de Rabi Judah, ou, segundo outros, do rabino Neemias “. [Mas] Rabi Shimon disse-lhe: “Pode o rolo da Lei faltar uma palavra? Não; o que devemos dizer é que até este ponto o Santo, Bendito Seja Ele, tenha ditado a Moisés repetiu e escreveu, e deste ponto D’us ditou e Moisés escreveu com lágrimas. ” (Baba Bathra 15a)
Nós vemos que a questão da “autoria” é debatida no Talmud. Devemos reconhecer que de acordo com ambas as opiniões a fonte das palavras da Torá é certamente D’us. O ponto de desacordo é: Foi Moisés ou Josué, que foi o canal através do qual a palavra de D’us fluiu?
Em certo sentido, a opinião de Rabi Judah indica que o Livro de Josué começa oito versículos antes, no final do Devarim/Deuteronômio. Claro, há uma ligeira diferença – nomeadamente em termos de santidade. O status dos Cinco Livros de Moisés – conhecidos como a Torá – é claramente superior aos outros livros dos profetas.
Leitura individual
Mas então nós começamos esta passagem intrigante:
Qual destas duas autoridades é seguida na regra de que … “os últimos oito versos da Torah deve ser lido por uma pessoa sozinha?” Segue-se o rabino Judah e não Rabi Shimon. Eu posso até dizer, no entanto, que decorre Rabi Shimon, [que diriam que] já que diferem [do resto da Torá], de uma forma, eles diferem em outro.”
Há um debate sobre a adequada compreensão dessas palavras, que vão ao cerne da nossa pergunta. Se os últimos oito versos da Torá são para serem lidos por uma pessoa, quando a Torá é lida na sinagoga, o que os diferenciam?
Rashi em seu comentário explica que o Talmud está dizendo aqui que estes oito versos são lidos por uma pessoa – ou seja, eles não devem ser divididos em duas aliyahs separadas para o Torah. Sabemos que o tamanho mínimo de uma aliá é de três versos. Estes oito, embora, de acordo com Rashi, devam permanecer como uma unidade. Esta opinião de Rashi foi codificada no Shulchan Aruch, Seção 428: 7. (De particular interesse são os comentários do Mishna Brurah, Nota 21, que indicam que é autoritária a opinião de que Yehoshua seja o autor desses oito versos.)
O Rama (Orah Chaim, Sec. 669) indica que o costume de Chattan Torah é derivada a partir desta passagem. A compreensão do Rama que “um”, diz ele, indica que o único a ler é seja uma pessoa especial na congregação.
Status alterado
A opinião de Maimônides é de particular interesse:
São permitidos aos oito versos no final da Torá para serem lidos com menos de dez (i.e. sem um minyan ou quorum adequado). Apesar de que toda a Torá de Moisés seja baseado na palavra do Todo-Poderoso, uma vez que estes versículos dão a indicação de que eles foram escritos depois da morte de Moisés, o seu status foi alterado e é admissível que uma só pessoa possa lê-los. (Mishná Torá, Leis de Oração, 13: 6)
Maimônides é inequívoco que as palavras da Torá provêm de D’us e foram ditadas a Moisés. No entanto, porque esses versículos dão a impressão de terem sido escritos após a morte de Moisés, o seu estado é alterado na medida em que pode ser lido sem um minyan.
Da mesma forma, Maimônides escreve em sua introdução ao Mishná Torá:
Toda a Torá foi escrita por nosso Mestre Moisés, antes de morrer, por sua própria mão.
Sua posição é clara de que toda a Torá, incluindo estes oito versos, fora o produto da mão de Moisés.
Rashi, em seus comentários sobre os Cinco Livros de Moisés, cita duas opiniões, sem indicar que ele considera normativa. Mas ele da a entender que Moisés estava incomodado pela autoria ou escrever sobre sua própria morte no tempo passado.
Escrito com lágrimas
Talvez se tivéssemos que voltar à passagem do Talmud, obteremos mais conhecimentos sobre esta questão.
Rabi Shimon disse-lhe: “Pode o rolo da Lei faltar uma palavra?… Não; o que devemos dizer é que até este ponto o Santo, Bendito Seja Ele ditou,Moisés repetiu e escreveu, e a partir deste ponto D’us ditou e Moisés escreveu com lágrimas “. (Baba Bathra 15a) (Grifo nosso)
O que significa quando se diz que “Moisés escreveu com lágrimas?” O entendimento simples seria que Moisés escreveu estes versos, enquanto estava chorando. Moisés, o servo fiel de D’us, recebe o ditado de D’us pela última vez, é dominado pela emoção e chora. De acordo com esse entendimento, não está claro porque as lágrimas de Moisés deva alterar o status destes versos.
O Ritva (e Yad Rama) explica que quando o Talmud diz que Moisés escreveu com lágrimas, isso significa lágrimas literalmente – em contraste com tinta. Estes comentários do Ritva seria realmente explicar por que diferentes status foram dados a estes versos que eram, por um lado, escrito pela mão de Moisés, mas, por outro lado, sem tinta.
[Para uma discussão sobre o estado halachico de tinta invisível, consulte Rabi Levi Yitschac Halperin, Responsa Maaseh Choshev, Vol. II, Sec. 14; ver, em geral sobre este tema, o rabino Yitzhak Mirsky, Hegyonei Halacha, Vol. II, p. 100-108]
Com base na explicação do Ritva, podemos reinterpretar as palavras de Rashi que, de fato, Josué escreveu estas palavras e, na verdade, Moisés escreveu estas palavras. Moisés escreveu-as com lágrimas com base na palavra de D’us; e, em seguida, Josué escreveu estas palavras com tinta. (Veja os comentários de Mahrasha, Baba Bathra 15a)
O Vilna Gaon entende que a palavra DAMA, que traduzimos como “lágrimas” de ser pronunciadas de forma ligeiramente diferente – como DEMA, o que significaria “confusão”. Isto implica que estes versos foram escritos por Moisés, mas sem MoIsés compreender o significado das palavras que ele estava escrevendo. (Veja Kol Eliyahu, v’zot HaBracha 133.) O Ketev Vikabalah, baseando a sua opinião sobre o ensino do Vilna Gaon, sugere que o rabino Judah e Rabi Shimon não estão discutindo, como sugerido acima.
Fogo Branco e Fogo Negro
Este ensinamento do Vilna Gaon lembra-nos da ideia popularizada por Nachmânides em sua introdução à Torá, onde ele descreve a Torá primordial ter preexistido criação, e que foi escrito com fogo branco (Torá Oral) e fogo negro (Torá escrita). Esta Torah é dita para conter uma sequencia de letras que compõem o nome divino. Assim, o Zohar ensina:
Para a Torá, como nos foi ensinado, consiste inteiramente de Seu Santo Nome; Na verdade, cada palavra nele escrito consiste e contém o Santo Nome. Portanto, deve-se tomar cuidado de errar em relação a este nome e deturpá-lo. Aquele que é falso ao Rei Supremo não será permitido a entrada de Palácio do Rei e será conduzido para longe do mundo para vir. (Zohar Shemot, seção 2, 87a página)
A fonte do fogo branco e preto pode do mesmo modo ser encontrado no Zohar:
Disse o rabino Isaac: “A Torá foi manifestado em um fogo negro que foi sobreposto em cima de um fogo branco, significando que, por meio da Torá a ‘mão direita’ apertou a “mão esquerda” que os dois poderiam ser fundidos, como está escrito: “à sua direita havia para eles o fogo da lei.”(Devarim/Deut. 33: 2). (Zohar, Shemot, seção 2, 84a página)
Com base nesta doutrina, pode-se compreender a entrega da Torá como peças da Divindade sendo separadas e entregadas ao homem. Se esta é a forma em que a Torá existia antes da criação, em certo sentido, não maior há justiça poética que no final da Torá as duas partes sejam restabelecidas.
Talvez seja por isso mesmo que um único indivíduo possa ler estes versículos (Sem precisar de um myniam), pois indica a capacidade de cada indivíduo de se relacionar com as palavras e o significado por trás das palavras de toda a Torá.
CHAZAK CHAZAK V’NITCHAZEK!
Por: Rabino Ari Khan
Tradução: André Ranulfo
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